S
E N T E N Ç A
Na Comarca de Itabira, MG, aos
31.AGO.2009, ajuizou o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS “ação
civil pública” em face do MUNICÍPIO DE ITABIRA em que pediu o
reconhecimento de inconstitucionalidade da Lei municipal nº 4.275, de 2009 e a
condenação do demandado a assumir a gestão e execução dos serviços prestados no
Hospital Carlos Chagas, por meio de sua administração direta ou por meio de
autarquia, destinando a totalidade dos atendimentos ao Sistema Único de Saúde
(SUS); assegurar a continuidade dos serviços ali prestados; e tomar
providências necessárias a fim de que os serviços sejam prestados por
servidores públicos concursados. Em
caráter eventual, pugnou pela abstenção de celebração de convênios para a
gestão e execução dos serviços naquele nosocômio à falta do necessário processo
licitatório.
Como causa de pedir, aduziu que, aos
05.DEZ.2004, o MUNICÍPIO DE ITABIRA tornou-se proprietário do Hospital
Carlos Chagas, que antes pertencia à COMPANHIA VALE DO RIO DOCE. A aquisição deu-se sob o compromisso de que a
municipalidade ré respeitasse os termos de contrato de comodato celebrado entre
a então proprietária e a SOCIEDADE BENEFICENTE SÃO CAMILO.
Informou que, no curso do comodato, a
entidade comodatária deixou de cumprir com algumas cláusulas previstas no
instrumento, a saber: deixou de ampliar
a capacidade de atendimento; deixou de adquirir equipamentos, passando a se
valer de mamógrafos e ecocardiógrafos de terceiros; terceirizou os serviços de
radiologia e de ultrassonografia, desativando equipamentos sem autorização do
Município; desativou os serviços de lavanderia, ginecologia e obstetrícia;
deixou de investir US$ 250,000.00 (duzentos e cinquenta dólares americanos).
Demais disso, teria disponibilizado
apenas quarenta por cento dos seus leitos para pacientes atendidos pelo SUS, ao
argumento de que estaria a disponibilizar porcentual maior em outros municípios
em que atua.
Noticiou que inspeções e vistorias
detectaram a necessidade premente de diversas benfeitorias, de fora à parte o
sucateamento de estruturas.
Narrou, de forma pormenorizada, o
histórico das negociações tendentes a dar pleno cumprimento ao contrato que
fora celebrado, que culminaram na celebração de “Termo de Compromisso de
Ajustamento de Conduta”, assinado aos 18.AGO.2008. por meio do qual o MUNICÍPIO
DE ITABIRA e a SOCIEDADE BENEFICIENTE SÃO CAMILO obrigavam-se a tomar
inúmeras medidas tendentes a regularizar a prestação de serviços de saúde
naquele nosocômico.
Todavia, Laudo e Parecer Técnico
evidenciaram enorme discrepância entre o que deveria ter sido e o que foi
efetivamente investido pela SOCIEADE BENEFICENTE SÃO CAMILO, influindo
negativamente, inclusive, na taxa de ocupação do HOSPITAL NOSSA SENHORA DAS DORES,
que passou a atender também a pacientes oriundos daquele hospital.
A despeito do que fora ajustado com o Parquet,
sobreveio a Lei municipal nº 4.275, de 2009, a qual estabelece a “execução,
em regime de parceria e colaboração de serviços públicos de saúde a serem
desenvolvidos no Hospital Carlos Chagas” e que autorizaria, mercê de seu
artigo 2º, o trespasse a instituições sem fins lucrativos das atividades de
execução material do serviço de saúde, permanecendo a Administração Pública
tão-somente com as áreas de “supervisão” e “fiscalização”.
À causa atribuiu o valor de R$ 5.000,00
(cinco mil reais), trazendo à colação os documentos de folhas 47-1.145.
Despacho liminar positivo à folha
1.147.
O MUNICÍPIO DE ITABIRA ofereceu
o “pronunciamento prévio” de folhas 1.146-1.183, da lavra dos preclaros Drs.
CARLOS PINTO COELHO MOTTA e FABIANO PENIDO DE ALVARENGA, apetrechado dos
documentos de folhas 1.184-1.263.
Pela respeitável decisão de folhas
1.266-1.269, restou indeferida a antecipação de tutela vindicada na petição
inicial.
Regularmente citado, apresentou o MUNICÍPIO
DE ITABIRA resposta na modalidade de contestação em que arguiu preliminar
de litisconsórcio passivo necessário.
No mérito, justificou a opção da
entidade política em firmar parcerias com a FUNDAÇÃO COMUNITÁRIA DE ENSINO
SUPERIOR DE ITABIRA (FUNCESI, doravante) e com a FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA
PESQUISA (FUNEP, doravante) na necessidade de fomentar a atividade de ensino,
explicitando as inúmeras vantagens na celebração das associações cooperativas
com tais entidades. Asseverou que a
contratação encontra amparo na Lei nº 8.958, de 1994 e no Decreto nº 5.205, de
2004.
Informou que não se procedeu à simples
terceirização dos serviços de saúde, mas a “gestão compartilhada” de tais
serviços, tanto que o MUNICÍPIO DE ITABIRA participa da administração
superior da entidade hospitalar por meio de sua Diretora Assistencial.
Traçou judiciosa digressão a respeito
da natureza jurídica dos convênios e propugnou a desnecessidade de realização
de processo licitatório destinado à escolha da entidade conveniada.
Impugnação autoral às folhas
1.339-1.350, acompanhada dos documentos de folhas 1.351-1.491.
Decisão interlocutória de saneamento
proferida às folhas 1.493-1.494, azo em que restou afastada a preliminar
arguida pelo demandado.
Agravo retido às folhas 1.504-1.519,
devidamente contrarrazoado às folhas 1.532-1.536.
Vieram conclusos a esse Juiz de Direito
cooperador.
É o RELATÓRIO do quanto
necessário. Passo a FUNDAMENTAR e
DECIDIR.
Não há nulidades a serem sanadas,
tampouco vislumbro qualquer delas que deva ser conhecida de ofício. Arredada a preliminar erigida pelo demandado
em sua bem lançada resposta, e porque presentes os pressupostos processuais e
as condições para o legítimo exercício do direito de ação, passo, súbito, ao
mérito.
Escuso-me de tecer, brevitatis causa,
maiores considerações a respeito da questão fática, porque despiciendas,
consoante relatório acima lançado.
Pelo que se dessume dos autos, a
anterior parceria do município réu com a SOCIEDADE BENEFICENTE SÃO CAMILO levou
o Hospital Municipal Carlos Chagas à situação de débâcle financeira, o que
acarretou, via de consequência, a impossibilidade de prestação satisfatória dos
serviços públicos de saúde aos munícipes.
Cuida-se, pois, de prescrutar se a
saída encontrada pela entidade ré, com
esteio na Lei municipal nº 4.275, de 2009, com base na qual foi celebrado
convênio com a FUNCESI e FUNEP, sustenta-se no plano jurídico.
Esclareço, desde logo, que a mera
participação de uma única funcionária de carreira no corpo diretivo do
nosocômico, consoante anotado na coarctada, não tem o condão de desnaturar o
trespasse de suas atividades-fim para entidades conveniadas, sem que com isso
se queira, de logo, declarar imprestáveis os documentos firmados com arrimo na
legislação municipal.
Cumpre-me, tão-somente, pois esse foi o
campo delimitado da litiscontestatio, proclamar a correção do obrar da
ré, no que toca à gestão dos essenciais serviços subministrados por meio do
hospital.
Com o surgimento das Organizações
Não-Governamentais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, no
âmbito do alcunhado “Plano Diretor da Reforma do Estado”, alvitrado pelo então
Ministério da Administração e Reforma do Estado, passou-se a questionar a
legalidade e, mais que isso, a constitucionalidade do trespasse, sic et
simpliciter, de determinadas atividades fundamentais da Administração
Pública ao chamado Terceiro Setor.
Relativamente no que toca às atividades
econômicas desenvolvidas pelo Estado, a regra, é cediço, é a subsidiariedade da
incursão estatal, proclamada em alta voz pela Lex Legum no artigo
173 de seu corpo permanente.
Não assim no que concerne à ordem
social de que tratam os artigos 193 e
seguintes, surgindo o Estado como ator de subida importância na educação, saúde
e assistência social.
Especificamente no que tange à saúde, o
Constituinte originário foi bastante claro ao estabelecer como diretriz a
participação da comunidade, bem assim a liberdade de ingresso dos atores
privados no cenário, mas de forma complementar ao sistema de saúde
único, dando-se preferência às entidades filantrópicas e àquelas sem fins
lucrativos, ao passo que veda auxílios e subvenções a empresas que não ostentem
tais objetivos.
Transcrevo, por pertinente, a redação
do artigo 199 da Constituição da República, ipsissima verba, mas
sem os grifos ora adicionados:
Art. 199. A assistência à saúde é
livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas
poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo
diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio,
tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
§ 2º - É vedada a destinação de
recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins
lucrativos.
§ 3º - É vedada a participação direta
ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no
País, salvo nos casos previstos em lei.
§ 4º - A lei disporá sobre as condições
e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias
humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta,
processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo
de comercialização.
Resta claro, destarte, que é o Estado o
responsável pela execução direta dos serviços, possibilitada a participação de
agentes do segundo e terceiro setores, independentemente de concessão ou de
permissão, institutos exigidos apenas para os chamados serviços de Estado não
abertos à iniciativa privada, na forma do artigo 175 do Texto Constitucional.
A respeito do tema, eis o precioso
escólio de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Parcerias na Administração Pública,
5 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 243), verbatim, com grifos ora
adicionados:
É importante
realçar que a Constituição, no dispositivo citado, permite a
participação de instituições privadas 'de forma complementar', o que afasta a
possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde,
como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado
serviço. Não pode, por
exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a
administração e execução das atividades de saúde prestadas por um hospital
público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é
contratar instituições privadas para prestar atividades-meio, como limpeza,
vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços
técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de
exames médicos, consultas etc.; nesses casos, estará transferido apenas a
execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas
não sua gestão operacional.
Nesse eito, o Estado possui a missão
constitucional de exercer, de forma direta, a execução dos serviços na
área de saúde, permitindo-se, todavia, à iniciativa privada, a transferência de
serviços adjetos a eles, pois, como acentua Di Pietro, e o faz com toda a
propriedade, “não tem fundamento jurídico, no direito
brasileiro, a terceirização que tenha por objeto determinado serviço público
como um todo.” (obra citada, p. 239).
No mesmo sentido, o renomado professor paulista
Celso Antonio Bandeira de Mello.
[…] no art. 196 a
Constituição prescreve que a saúde é 'dever do Estado’ e nos arts. 205, 206 e
208 configura a educação e o ensino como deveres do Estado, circunstâncias que
o impedem de se despedir dos correspondentes encargos de prestação pelo
processo de transpassá-lo a organizações sociais […]. como sua prestação se
constitui em 'dever do Estado', conforme os artigos citados (arts. 205, 206 e
208), este tem que prestá-los diretamente. Não pode eximir-se de
desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos
deveres constitucionais aludidos pela via transversa de 'adjudicá-los' a
organizações sociais. Segue-se que estas só poderiam existir complementarmente,
ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou.
(Curso de Direito Administrativo, 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 232)
Ergo, infere-se não ser
possível ao titular do serviço dele demitir-se, ainda que sob o color de que a
inconstitucional transferência traria maiores benefícios à população, o que
configuraria, de resto, atestado de incapacidade para gestão de serviços
próprios do estado, embora não-exclusivos.
Em casos como os de que tratam estes
autos, a possibilidade de delegação a particulares integrantes do chamado
Terceiro Setor somente seria viável na chamada “atividade-meio”, pois o
arcabouço legislativo pátrio que trata de convênios, termos de parceria (Lei nº
9.790, de 1999) ou contratos de gestão (Lei nº 9.637, de 1998) não autoriza, de
forma alguma, aviso em sentido contrário.
Consoante lição de GUSTAVO JUSTINO DE
OLIVEIRA e FERNANDO BORGES MÂNICA (Organizações da sociedade civil de interesse
público: termo de parceria e licitação. In: Fórum administrativo – Direito
Público, ano 5, nº 49. Belo Horizonte: Fórum, mar/2005, p. 5209-5351),
a OSCIP deve atuar
de forma distinta do Poder Público parceiro, ou seja, deve ser clara a
separação entre os serviços públicos prestados pela entidade pública e as
atividades desenvolvidas pela OSCIP (...) impedindo-se, assim a
caracterização de uma forma ilegal de terceirização de serviços públicos.
Afinal, o termo de parceria é instrumento criado para que entidades do terceiro
setor recebam incentivo para atuar ao lado do ente público, de maneira distinta
dele, e não para que substitua tal ente, fazendo as vezes do Poder Público.
Repontando-se para a hipótese sub
iudice, o que fez a Lei municipal de Itabira nº 4.275, de 2009, publicada
poucos dias antes dos convênios que culminaram por trespassar as atividades a
fundações de direito privado, foi, sob o color de aguilhoar a modernização do
Estado e assegurar melhores eficiência gerencial e de prestação dos serviços,
reservar para o MUNICIPIO DE ITABIRA tão-somente a “supervisão e
fiscalização” dos serviços públicos, afastando-se do desiderato constitucional
e propiciando a entrega de próprio municipal, de bens móveis, de recursos
financeiros, de fora à parte conferir-lhes autonomia para geri-los e para
contratar, à míngua do devido processo licitatório.
Como mero reforço de argumentação,
anoto que o Sistema Único de Saúde é de responsabilidade do Estado, devendo ser
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A atuação complementar da
iniciativa privada somente é autorizada constitucionalmente quando a capacidade
instalada das unidades hospitalares estatais revelar-se insuficiente, dando-se
preferência a entidades filantrópicas e sem fins lucrativos.
No mesmo sentido, a Lei nº 8.080, de
1990, que permite às entidades estatais lançarem mão da capacidade já
instalada da iniciativa privada, quando insuficiente o aparelhamento
estatal. Com o perdão da filosofia
acaciana, “capacidade já instalada” pressupõe a prévia atuação não estatal no
setor.
Mais uma vez, caem a lanço as lições de
Di Pietro, com grifos que adiciono:
No entanto, a
própria Constituição faz referência à possibilidade de serem os serviços
públicos de saúde prestados por terceiros, que não a Administração Pública. Com
efeito, o art. 199, § 1º, estabelece que "as instituições privadas poderão
participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo
diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo
preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos."
A Constituição
fala em contrato de direito público e em convênio. Com relação aos contratos,
uma vez que forçosamente deve ser afastada a concessão de serviço público, por
ser inadequada para esse tipo de atividade, tem-se que entender que a
Constituição está permitindo a terceirização, ou seja, os contratos de
prestação de serviços dos SUS, mediante remuneração pelos cofres públicos.
Trata-se dos contratos de serviços regulamentados pela Lei nº 8.666, de
21.6.93, com alterações introduzidas pela Lei nº 8.883, de 8.6.94. Pelo
art. 6º, inc. II, dessa lei, considera-se serviço "toda atividade
destinada a obter determinada utilidade de interesse da Administração, tais
como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação,
reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade,
seguro ou trabalhos técnico-profissionais."
[...]
A Lei nº 8080, de
19.9.90, que disciplina o Sistema Único de Saúde, prevê, nos arts. 24 a 26, a
participação complementar, só admitindo-a quando as disponibilidades do SUS
"forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de
uma determinada área",
hipótese em que a participação complementar "ser formalizada mediante
contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito
público" (entenda-se, especialmente, a Lei n° 8.666, pertinente a licitações
e contratos). Isto não significa que o Poder Público vai abrir mão da
prestação do serviço que lhe incumbe para transferi-la a terceiros; ou que
estes venham a administrar uma entidade pública prestadora do serviço de saúde;
significa que a instituição privada, em suas próprias instalações e com seus
próprios recursos humanos e materiais, vai complementar as ações e serviços
de saúde, mediante contrato ou convênio."
Da maneira como vem obrando a
municipalidade ré, o que se pode afirmar, à margem de qualquer dúvida ou
entredúvida, é a contratação, à revelia das normas cogentes, de prestação de
serviços públicos acompanhadas de concessões de uso, transferência de recursos
públicos etc. com demissão total da atividade de execução, o que se mostra ilegal
e inconstitucional, ainda que se formalizem sob o epíteto de convênio, pois não
é o nome que confere natureza às coisas.
Transcrevo pertinente precedente da
Corte paranaense, nesse mesmo diapasão:
APELAÇÃO CÍVEL -
CONSTITUCIONAL - ADMINISTRATIVO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - TERMO DE PARCERIA
FIRMADO ENTRE MUNICÍPIO E ORGANIZAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO -
OSCIP - TRANSFERÊNCIA, SENÃO TOTAL, QUASE QUE TOTAL, DOS SERVIÇOS DE SAÚDE
PÚBLICA MUNICIPAL À INICIATIVA PRIVADA - IMPOSSIBILIDADE - VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL
- RECURSO DESPROVIDO
1. Os serviços
públicos de saúde, nos termos do art. 199, § 1º, da Constituição Federal ,
devem ser prestados diretamente pelo estado, cabendo à iniciativa privada, no
que diz respeito ao Sistema Único de Saúde, apenas e tão-somente atividades
complementares, mediante contrato de direito público ou convênio.
2.
Restando
demonstrado nos autos que o Município de Palotina pretende transferir a
administração do único hospital público municipal à iniciativa privada,
inclusive com o repasse à instituição que for administrá-lo das verbas que lhe
cabem no Sistema Único de Saúde, certo ser afirmado, como decidido pelo ilustre
Magistrado de 1º Grau de jurisdição, que a atividade da instituição privada não
será, no que diz respeito à saúde pública, complementar às do Município."
(TJPR - AC 0426165-4 - 5ª C.Cív. - Rel. Juiz Conv. Eduardo Sarrão - DJe
22.09.2008)
Também merecem alusão, as lúcidas
ponderações lançadas em decisão monocrática da lavra do culto Desembargador
paranaense MIGUEL KFOURI NETO:
SUSPENSÃO DE LIMINAR Nº 772.532-0
REQUERENTE : MUNICÍPIO DE PONTA GROSSA. INTERESSADO : PASCOAL ADURA e WINSTON
ANTÔNIO BASTOS. VISTOS Município de Ponta Grossa postula a suspensão dos
efeitos da decisão exarada pelo Dr. Juiz de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca
de Ponta Grossa (fls. 22/25), o qual, nos autos da ação popular nº 9400/2011, suspendeu
o curso do procedimento de chamamento público, na modalidade de credenciamento,
aberto para contratação de pessoas jurídicas, sem fins lucrativos e ligadas a
instituições de ensino superior, para prestarem serviços na área de saúde,
mais precisamente nos quatro Centros de Atenção à Saúde (CAS) existentes no
âmbito do seu território. Sustenta em sua petição (fls. 02/21), que o
procedimento instaurado não é ilegal, já que, por se tratar de uma forma de
contratação direta, encontra amparo no art. 25 da Lei de Licitações - Lei nº
8.666/93 -, sobretudo porque, sendo possível a contratação de todos os que
demonstrem interesse de atuar no ramo da saúde e atendam às condições mínimas
estabelecidas no regulamento, torna-se impossível a competição, ainda mais que
os valores a serem pagos são explicitados no edital e são os mesmos para todos.
Aduz, ainda, que o próprio Tribunal de
Contas da União, ao examinar caso análogo ao que se apresenta, entendeu não
haver irregularidade alguma.
Afirma, ainda, que no Estado do Paraná
foi editada a Lei nº 15.608/2007, na qual a contratação por meio de
credenciamento foi regulamentada, não havendo óbice algum a que seja implementada
pelos municípios.
Assevera, por outro lado, que, ao
contrário da alegação do autor da ação popular, e que foi acolhida pelo ilustre
magistrado prolator da decisão impugnada, não haverá transferência dos
serviços de saúde à pessoas jurídicas de direito privado, o que encontra óbice
no art. 198 da Constituição Federal, até porque os quatro Centros de
Atenção à Saúde - CAS existentes em Ponta Grossa não são os principais serviços
de saúde ofertados pelo município, que também conta com dezesseis (16) unidades
básicas de saúde e vinte e duas (22) Unidades Saúde da Família, com quarenta
(40) equipes de saúde da família, locais em que servidores públicos efetivos
atuam e prestam os serviços à comunidade.
Entende que, em razão dessa
circunstância fática, outra não pode ser a conclusão senão a de que a
contratação de pessoas jurídicas sem fins lucrativos para atuar na área de
saúde visa complementar os serviços já prestados pelo município na área de
saúde, o que não é vedado pelo art. 199 da Constituição Federal.
Alega, também, que, caso a decisão
contestada não seja suspensa, os quatro Centros de Atenção à Saúde - CAS
fecharão as suas portas, já que em 15 de abril deste ano as empresas que foram
contratadas no ano de 2007 para neles prestarem os serviços de saúde deixarão
de fazê-lo, pois os contratos encerrar-se-ão naquela data, não mais podendo ser
prorrogados em razão de expressa vedação contratual.
Afirma, ainda, que se os CAS deixarem
de funcionar a população é que será a grande prejudicada, haja vista o fato de
que as vinte mil (20.000) consultas que, mensalmente, são realizadas nos CAS
não mais o serão.
Por fim, afirma não ser fácil contratar
médicos para atuarem na área de saúde municipal, tanto que no último concurso
realizado, dos dezoito (18) médicos aprovados, apenas dois (2) aceitaram a
nomeação.
É o relatório. Decido.
[...]
A Constituição Federal de 1988, após
instituir, em seu art. 198, o Sistema Único de Saúde - SUS, a ser organizado
mediante algumas diretrizes expressamente indicadas no texto constitucional -
(a) descentralização, com direção única em cada esfera de governo; (b)
atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistenciais; e (c) participação da comunidade - e
financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes - fato a
demonstrar que o próprio poder público tem o dever de não só gerenciar o
sistema como também executar as políticas e os serviços de saúde pública -,
permitiu, em seu art. 199, § 1º, a participação no sistema único de saúde de
entidades privadas, porém, de forma complementar, ou seja, a
atividade principal deve ser diretamente exercida pelo Estado que poderá
socorrer-se de entidades privadas para, havendo necessidade, complementar o
atendimento à saúde da população. Essa conclusão decorre da leitura das
normas contidas nos arts. 198 e 199 da Constituição Federal, verbis: (omissis)
José Afonso da Silva, em sua obra "Curso de Direito Constitucional
Positivo", ao comentar a atuação do Estado e das entidades privadas no
sistema único de saúde, afirma que, em regra, os serviços públicos de saúde
devem ser prestados pelo Estado, cabendo à iniciativa privada, no que diz
respeito ao sistema único de saúde, atividades complementares, verbis:
"O sistema único de saúde,
integrado de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de
saúde, constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação
jurídica de saúde que tem no pólo ativo qualquer pessoa e comunidade, já que o
direito à promoção e à proteção da saúde é também um direito coletivo. O
sistema único de saúde implica ações e serviços federais, estaduais, distritais
(DF) e municipais, regendo-se pelos princípios da descentralização, com direção
única em cada esfera de governo, do atendimento integral, com prioridade para
as atividades preventivas, e da participação da comunidade, que confirma seu
caráter de direito social pessoal, de um lado, e de direito social coletivo, de
outro. É também por meio dele que o Poder Público desenvolve uma série de
atividades de controle de substâncias de interesse para a saúde e outras
destinadas ao aperfeiçoamento das prestações sanitárias. Responsável, pois,
pelas ações e serviços de saúde é o Poder Público, falando a Constituição,
neste caso, em ações e serviços públicos de saúde, para distinguir da
assistência à saúde pela iniciativa privada, que ela também admite, e cujas
instituições poderão participar complementarmente do sistema único de saúde,
sendo vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às
instituições privadas com fins lucrativos. O § 3º do art. 199 contém uma regra
praticamente inócua, ao vedar a participação direta ou indireta de empresas ou capitais
estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei;
como a lei pode prever todos os casos, não há limitação alguma. Talvez não
fosse mesmo o caso de proibir a participação de empresa ou de capitais
estrangeiros, mas apenas a remessa de lucros provenientes de serviços de
assistência à saúde." (in "Curso de Direito Constitucional", 11ª
Edição, 1996, Editora Malheiros, pág.762).
No mesmo sentido é a lição de Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, que foi citada tanto pelo autor como pelo réu, verbis:
[...]
Resta certo, assim, que, no âmbito
do sistema único de saúde, os serviços devem ser prestados diretamente pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sendo lícito que a iniciativa
privada, mediante contrato de direito público ou convênio, participe do sistema
único de saúde, desde que tal participação dê-se de forma complementar.
[...]
Dessa diretriz, afastou-se, de maneira
frontal, a Lei municipal nº 4.275, de 2009, cuja inconstitucionalidade
reconheço em caráter incidental e que permitiria à entidade ré a celebração de
instrumentos que importassem trespasse das atividades-fim, não em caráter
complementar, mas principal.
Não merece medrar, todavia, a pretensão
ministerial no sentido de que no nosocômico somente prestem serviços
funcionários públicos, pois que as atividades-meio (limpeza, fornecimento de
alimentação, exames especializados) poderão ser contratadas com terceiros.
Nessa ordem de considerações, extingo o
feito com resolução do mérito (Código de Processo Civil, artigo 269, inciso I)
e julgo PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido para condenar o MUNICÍPIO
DE ITABIRA na obrigação de fazer, consistente na assunção da gestão e da
execução dos serviços médicos a serem prestados no Hospital Carlos Chagas,
destinando a totalidade dos atendimentos ao SUS, para o quê fixo-lhe o prazo de
06 (seis) meses, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), a
ser revertida em favor do Fundo de Interesses Difusos, facultada a contratação
de atividade-meio, sempre mediante o devido processo licitatório.
E porque presentes os requisitos, defiro
a antecipação de tutela anteriormente denegada.
Condeno o MUNICÍPIO DE ITABIRA
nas custas do processo (isento) e na verba honorária que, atento ao quanto
disposto no artigo 20, §4º do Código de Processo Civil, fixo em R$ 5.250,00
(cinco mil, duzentos e cinquenta reais), atento à complexidade das bem
elaborada petições, ao expedito trâmite processual e à ausência de audiências.
Considerando o valor atribuído à causa,
deixo de submeter o feito ao reexame necessário.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.
Itabira, 11 de outubro de 2011.
PEDRO CAMARA RAPOSO LOPES
Juiz
de Direito cooperador
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