segunda-feira, 27 de junho de 2011

Sentença - Possessória - Supressio

OBS.:  A sentença abaixo transcrita foi reformada pelo egrégio TJMG.







S E N T E N Ç A






Cuida-se de ‘ação de reintegração de posse’ que LIACIR VASCONCELOS, pela pena do nobre advogado Dr. JOSÉ ANTÔNIO DE OLIVEIRA, moveu, aos 24 de novembro de 2005, em face de JOSÉ VASCONCELOS, no bojo da qual pediu fosse reintegrado na posse do imóvel rural situado no chamado Córrego do Beija-Flor, no município de Engenheiro Caldas, MG, nesta Comarca de Tarumirim, bem como fossem fixados valores, a título de alugueres no importe de R$ 200,00 (duzentos reais) mensais.
Como causa de pedir, aduziu ser proprietário das aludidas terras e que, no ano de 1969, como seu irmão atravessasse situação financeira precária, consentiu que ele ali fosse residir com sua prole.
Informou que, passados mais de trinta e cinco anos, a situação financeira do demandado já não é a mesma, de vez que seus filhos são maiores e possuem condições de acolher o réu, ao passo que o demandante necessita do imóvel, razão pela qual notificou seu irmão no dia 13 de outubro de 2005 para que o desocupasse, sob pena de cobrança de aluguel no valor de R$ 200,00 (duzentos reais) mensais.
Segundo noticia a petição inicial, ultrapassada a dilação, o réu não desocupou o bem e ainda teria ‘contra-notificado’ o autor, daí a presente demanda.
À causa deu o valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), requerendo as benesses da assistência judiciária gratuita e a concessão de medida liminar inaudita altera parte.
Com a inicial vieram os documentos de ff. 07-16.
Pela respeitável decisão de ff. 17-18, o MM. Juiz que me antecedeu no feito, o Dr. ARMANDO GUEDINI NETO, determinou a realização de audiência de justificação que se realizou aos 02 de agosto de 2007, azo em que indeferi a liminar e procedeu-se a colheita do depoimento de uma testemunha (ff. 28-30).
O réu, em sua contestação de ff. 31-36, negou a existência do comodato verbal e sustentou que o demandante teria adquirido a gleba com o intuito de especulação, tanto que era residente no antigo Estado da Guanabara para onde voltou pouco tempo depois da aquisição e do malogro do projeto imobiliário, época em que o demandado foi morar na pequena casa que ali existia e para cujas reformas contribuiu com seus recursos financeiros e esforços.
Narrou que o irmão somente retornou ao local após seis anos de ocupação mansa e pacífica pelo demandado e sua família, que ali fixaram residência há cerca de trinta e oito anos e fizeram construções e benfeitorias importantes.
Requereu também os benefícios da assistência judiciária gratuita e juntou os documentos de ff. 37-38.
Réplica às ff. 40-44, que se fez acompanhar de alentada documentação, na qual alegou o demandante haver arrendado o imóvel para um outro irmão, tendo sempre ajudado a família do demandado, tanto que levou sete filhos dele para a cidade de São Paulo, às suas expensas, jamais perdendo contato com a família e com a propriedade, a qual era visitada com freqüência anual.
Após sua aposentadoria, teria construído uma outra casa no terreno, na qual residiria desde 1989.
Quanto às benfeitorias, todas teriam sido feitas às suas expensas, à exceção de uma pequena varanda.
Nova manifestação do réu às folhas 90-93.
Audiência preliminar realizada aos 13 de junho de 2008, ocasião em que foram fixados os pontos controvertidos e deferida a produção de prova oral.
Audiência de Instrução e Julgamento (A.I.J.) realizada aos 07 de agosto de 2008, ocasião em que foram colhidos os depoimentos de oito testemunhas e declarada encerrada a fase de instrução.
Alegações finais pelo autor às ff. 131-136; pelo réu às ff. 138-142.
É o RELATÓRIO do quanto necessário.  Passo a FUNDAMENTAR e DECIDIR.
Não há nulidades a serem sanadas.  À falta de preliminares a serem enfrentadas e presentes as condições da ação e pressupostos processuais, passo, súbito, ao mérito.
Defiro a assistência judiciária gratuita a ambas as partes.
Em se tratando de ações possessórias de bens imóveis cuja ocupação remonta a décadas, a análise da prova deve ser feita com redobrado cuidado, sobretudo ante a própria natureza dos interesses em testilha, quase sempre albergados por normas de envergadura constitucional.
É o que se tem no conflito entre o direito de propriedade e o seu exercício de acordo com a função social; entre o direito de habitação e o próprio direito de propriedade, tradicionalmente tido e havido por absoluto; entre a função social dessa mesma propriedade e a dignidade da pessoa humana, pedra angular de todo o sistema.
No caso dos autos, procurou-se reconstruir a história de uma relação homem-terra que data de quase quatro décadas, e a reconstrução só fez-se possível mercê da memória de personagens coadjuvantes, mas cuja participação nestes autos mostrou-se da mais subida relevância.
Eis a história reconstruída, cimentada com os respectivos alicerces probatórios.
Nos idos de 1969, o demandado e sua família residiam na companhia de seu sogro, em uma quinta próxima ao bem litigioso.  Por algum motivo que não restou esclarecido nos autos, provavelmente venda do imóvel, foi o demandado obrigado a se mudar com seus onze filhos, indo encontrar abrigo na propriedade do autor.
Confiram-se os dizeres de JOSÉ JANUÁRIO MARTINS (folha 123), com supressões decorrentes da síntese, ipsissima verba:
[...] que conhece o imóvel litigioso; que o autor comprou as terras e lá morou um tempo; que o réu morava no terreno de seu sogro; [...] que o depoente sabia que o terreno do sogro do réu havia sido vendido e deveria ser entregue ao novo comprador

Tem razão o demandado quando informa que seu irmão havia comprado o imóvel para ali não morar.  E isso se dessume do próprio contrato de arrendamento celebrado entre o autor e seu outro irmão ESTELINO DE VASCONCELOS (folhas 45-46), cuja existência é roborada pela prova testemunhal.
É fato, também, que depois da compra o autor morou por muito pouco tempo no imóvel e que ESTELINO DE VASCONCELOS não chegou de fato a ocupá-lo.  Di-lo ATAÍDE SIMONCELO (folha 125), verbatin:
[...] que mora no imóvel é o réu; que ele mudou para lá em 1969; que quando o réu se mudou não havia ninguém morando no local; que LIACIR deixou que o réu fosse lá morar; que antes disso o autor morou no imóvel, mas foi morar em São Paulo; que na época em que JOSÉ mudou-se, o terreno estava arrendado para um irmão, mas não a casa [...]

O depoimento pessoal do réu à folha 117 é no mesmíssimo sentido, litteratim:
[...] O nobre advogado do autor perguntou ao réu se o imóvel esteve arrendado algum tempo para o irmão Estelino.  O réu respondeu que o imóvel foi arrendado a Estelino, mas este não chegou a morar no imóvel; que isso se deu na época em que o autor [rectius: réu] ingressou no imóvel.

Também o depoimento de JOSÉ JANUÁRIO MARTINS (folha 123):
[...] que conhece o imóvel litigioso; que o autor comprou as terras e lá morou um tempo [...].

Pois bem.  Para receber a família do demandado, fez o autor alguns aprestos, como se haure nos depoimentos de JOSÉ JANUÁRIO MARTINS (folha 123) e ATAÍDE SIMONCELOS (folha 125):
[...] que o autor foi morar fora da cidade voltando para a companhia onde trabalhava, mais ou menos na mesma época em que procurou o depoente para comprar madeira, dizendo para o depoente que era para reformar a casa para que seu irmão lá fosse morar; [...] que passados uns 40 dias da compra da madeira viu o réu residindo no imóvel [...]
[...] que antes do réu ir morar na casa o autor fez uma reforma porque a casa não estava boa [...]

Embora tenha o demandante consentido que o réu e sua família fossem morar na sua propriedade, é da prova que em nenhum momento deixou de exercer os poderes inerentes ao domínio, consoante ressai dos seguintes depoimentos, todos no sentido de que o imóvel periodicamente era visitado:
[...] que mora vizinho ao imóvel litigioso há 50 anos; que foi o autor que comprou a terra; que não chegou a ver o autor morar no imóvel, mas sabe que ele vinha visitar nas férias; que não sabe informar a que título se deu o ingresso no imóvel, sabendo dizer que ninguém morava ali; que não sabe informar se pouco antes da mudança houve reforma; que o autor continuou vindo para a região nas férias [...] (ARGENTINO FERREIRA TAVARES, folha 118).
[...] que o autor vinha para essa região de 05 em 05 anos [...] (MARLENE ALVES DE ALMEIDA, folha 121).
[...] que o autor vinha para a região todas as férias; que sabe disso porque liderava a igreja católica, grupo do qual participava o autor [...] (JOSÉ JANUÁRIO MARTINS, folha 123).
[...] que o autor sempre vinha passear, donde presume o depoente que o réu só pode ter ingressado por acordo; que durante a estada do réu nesses anos todos,o autor sempre vinha visitar [...] (JOSÉ ASSIS DE ALMEIDA, folha 124).
[...] que todo ano o autor vinha para a casa [...] (ATAÍDE SIMONCELOS, folha 125).

A testemunha JOSÉ PEREIRA DE SOUSA (folha 119) informou que, durante o tempo em que esteve ausente, o demandante, por intermédio de um filho do réu, ajudou no custeio da construção de um poço, inculcando que fora ele quem, de fato, havia ajudado seus sobrinhos a irem para São Paulo:
[...] que a filha do réu foi para São Paulo há 20 e poucos anos para lá; que quando ela foi para lá o autor já se encontrava lá; que não sabe dizer qual dos dois irmãos custeou as benfeitorias; que quem fez o poço foi o filho do réu mas com a ajuda do autor, embora não tenha certeza disso; que esse filho do réu foi morar em São Paulo; que ele foi depois da filha; que foi o autor que levou esse filho do réu.

Após a aposentação, passou o autor a morar no imóvel litigioso, em uma casa construída mais recentemente:
[...] que foi o depoente que construí a casa onde hoje reside o autor; que mora na região há 37 anos; que não está bem certo mas acha que construiu a casa em 1988/1989; que sabia por notícias que o autor freqüentava a região todo ano (REINALDO RODRIGUES DOS SANTOS, folha 122).
[...] que conhece o imóvel litigioso; que conhece o local desde que nasceu; que ambas as partes moram no imóvel [...] (JOSÉ ASSIS DE ALMEIDA, folha 124).
[...] que quando o autor se aposentou, para não perturbar o irmão, o autor construiu uma casa perto da do irmão, onde até hoje mora (ATAÍDE SIMONCELOS, folha 125).
Ora, mesmo abstraída a gênese da posse ou detenção do imóvel pelo réu, se seu irmão, como deram noticia os depoimentos harmônicos e coesos, todos os anos freqüentava a propriedade, lobriga-se haver se estabelecido entre as partes uma relação de confiança que se traduz, na prática, em atos de permissão.
Tal permissão enquadra-se no conceito de detenção constante do artigo 1.208 do Código Civil:
Art. 1.208. Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade

A hipótese caracteriza a chamada detenção dependente, que se transmuta em posse precária com a recusa de devolução da coisa, quando, então, passa o detentor a exercer, sui iuris, poderes inerentes à propriedade.
A injustiça da posse, em hipóteses tais, coincide temporalmente com a sua aquisição.  A mera detenção sublima-se em posse injusta sem antes passar pelo passo intermediário da posse justa, que é o que se dá nas outorgas formais de uso.
Merece, de rigor, proteção o possuidor abruptamente esbulhado pela quebra da confiança que até então norteava a relação.
A notificação juntada às ff. 10-11 evidencia a quebra da confiança e legitimaria a outorga da tutela possessória, ex vi do artigo 1.210 do Código Civil.
Todavia, sabe-se que um dos princípios cardeais que orienta o direito civil é o da boa-fé objetiva, em cuja essência repousa a exigência de comportamento elevado na vida de relação, de modo a não frustrar a legítima confiança despertada na parte contrária, ou a malferir as suas expectativas que se fundem em causa juridicamente relevante.
Dentre as condutas verberadas pelo aludido cânone, está o protraimento desleal do exercício de um direito (supressio).
A longa inércia engendrou no espírito da contraparte razoável expectativa de que não haveria a retomada ex abrupto da posse.  Afinal, foram mais de três décadas sem oposição por parte do autor.
Na lição de Menezes de Cordeiro[1], “diz-se supressio a situação do direito que não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outra forma, contrariar a boa-fé”.
Há contradição manifesta no longo período de omissão no exercício da potestade e o pedido de retomada do imóvel, com evidente discrepância entre os valores jurídicos envolvidos, quais sejam de um lado o uso da faculdade sic et simpliciter de retomada do imóvel, que se traduz no ius abutendi, de outro o direito fundamental à moradia e o princípio da dignidade da pessoa humana.
A pretensão desalijatória, na hipótese concreta, divorciada da demonstração do real proveito que dela poderia extrair o seu titular, configura abuso do direito de propriedade, fazendo o autor incidir no artigo 187 do Código Civil brasileiro.
O egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em recentíssimo precedente, reconheceu a possibilidade de aplicação do abuso de direito sob a modalidade da supressio, consoante lúcido trecho do voto líder proferido pelo eminente Desembargador ROBERTO BORGES DE OLIVEIRA na Apelação Cível 1.0024.07.573225-5/001 (DJ de 20 de junho de 2008), que ora transcrevo:
A supressio refere-se ao fenômeno da supressão de determinadas relações jurídicas pelo decurso do tempo.
Mas o decurso de um razoável lapso temporal é apenas uma das condições para a configuração do instituto. São necessários, também, a existência de indícios de que o direito não mais seria exercido e, ainda, o desequilíbrio entre o benefício do credor e a obrigação do devedor, em razão da ação do tempo.
De acordo com essa teoria, a boa-fé objetiva tem o condão de limitar o exercício dos direitos subjetivos ao determinar a preservação da lealdade, a correção e a confiança entre as partes da relação jurídica.
(omissis)

Modernamente, vem a talho a precisa lição de CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD[2]:
Assim, deve o magistrado na ponderação de cada caso concreto observar se a prolongada tolerância do possuidor incutiu na contraparte a sensação de confiança quanto a uma provável atitude de abandono do bem.  Não existe qualquer pacificação social ou segurança jurídica em uma situação de tolerância que se prolongue indefinidamente.

Eis precisamente a hipótese dos autos.
Evidente o decurso do dilargado lapso temporal, parece-me que a corrosão por ele proporcionada ao benefício que auferiria o proprietário com a retomada, desamparando idoso que conta com oitenta e seis anos de idade, predica a manutenção do status quo, até que se logre demonstrar situação igualmente passível de proteção jurídica, que não configure exercício abusivo do direito e que encontre guarida em princípios constitucionais, vetores que contaminam toda a legislação ordinária e dos quais não pode o julgador se afastar.
Nessa ordem de considerações, extingo o processo com resolução de mérito (Código de Processo Civil (CPC), artigo 269, inciso I) e JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO, condenando o demandante nas custas do processo e na verba honorária que, atento às peculiaridades da causa, máxime a presença em três audiências, fixo em R$ 2.850,00 (dois mil oitocentos e cinqüenta reais), cuja exigibilidade suspendo ex vi do artigo 12 da Lei nº 1.060, de 1950, eis que defiro a assistência judiciária gratuita.
Publique-se.
Registre-se.
Intimem-se.

                                               

PEDRO C. RAPOSO-LOPES

Juiz de Direito


[1] Menezes de Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, Almedina, 1984,v. 2, p. 297
[2] Direitos reais. 3ª ed. Rio de Janeiro:  Lumen Júris, p. 70.

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