MORTAIS
“Eles
estão se adiantando, os meus amigos./ Sei que é útil a morte
alheia / para quem constrói seu fim./ Mas eles estão indo,
apressados,/ deixando filhos, obras, amores inacabados/ e revoluções
por terminar./ Não era isto o combinado.// Alguns se despedem
heroicos,/ outros serenos./ Alguns se rebelam./ O bom seria partir
pleno.// O que faço? Ainda agora/ um apressou seu desenlaçe./ Sigo
sem pressa. A morte/ exige trabalho, trabalho lento// como quem
nasce”.
(“Estão se Adiantando”, Affonso Romano de Sant’Anna)
Estava decidido a
escrever sobre um tema mais ameno. Alguma atualidade que vem sendo
debatida nos jornais ou nas redes sociais, que andam prenhes de
material. Refugiados sírios, feminismo no Enem, a carestia dos
brasileiros, enfim. Eu até já havia concebido uma estória
interessante sobre violência urbana e aplicativos de celulares
(esta, aliás, uma boa estória, mas que ficará para uma próxima
oportunidade, se me for concedida).
Mas, justamente
hoje, assisti um filme a que há muito tempo me propus a assistir:
“Invasões Bárbaras” (“Les
invasions barbares”,
de Denys Arcand, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro do ano
de 2003) e que trata justamente da morte e daquilo que, no final de
nossas vidas, realmente importa.
Já faz algum tempo
que venho me preocupando com a morte, cuja melhor definição, a meu
juízo, é a que Vinícius de Moraes cunhou em seu maravilhoso
“Soneto da Fidelidade”: a “angústia
de quem vive”.
Quem vive sente angústia. Pode até não temer a morte, mas
angústia sente, é induvidoso.
E por que me
preocupo com a morte, se doente não estou, se meus familiares e
amigos gozam de boa saúde? O que me parece é que, a partir de
determinada idade (e, no meu caso, o marco fatal foi o advento de 40º
aniversário), paramos de somar e começamos a subtrair: 30, 20, 10,
5 anos. “Ipso
facto”, nos
apegamos cada vez mais ao tempo que nos resta e que teima em nos
escapar (“tempus
fugit”,
como diziam os antigos). A isso alio a idade de nossos pais, tios,
avós, cuja contagem regressiva já vai mais avançada.
E, devo dizer, não
só o medo da perda nos assombra, mas também o modo como os
derradeiros dias nossos e de nossos amados serão vividos.
De fato, as pessoas,
nos dias atuais, graças aos avanços da medicina moderna e à
ganância da indústria farmacêutica, já não morrem mais “ex
abrupto”:
vão morrendo aos poucos, minguando, a chama vital mantendo-se
acesa à força de intubações e outros métodos artificiosos. São
raros os casos em que é dado a um moribundo expirar nos braços dos
seus familiares e amigos, no lugar que escolheu, nas condições que
elegeu para tanto, talvez ouvindo aquela canção que mais marcou a
sua passagem por este plano. A tendência cada vez maior é mesmo a
morte lenta e indigna nos leitos das UTIs, rodeados por equipamentos
e circundado por outros pacientes na mesma condição desumana, tendo
por fundo musical o “pi-pi-pi” dos monitores e engenhocas de
sustentação da vida. Sustentação da vida? Qual vida? Sustentar
o quê?
O tema foi tratado
com invulgar humanismo pelo autor americano Dr. Atul Gawande em seu
livro “Mortais” (cujo título foi tomado de empréstimo para este
artigo). A obra narra casos de doenças terminais em que pacientes
escolhem a terapia de “cuidados paliativos” no lugar dos
“cuidados intensivos”, minimizando as dores e aflições dos
momentos derradeiros e procurando agregar ao resto de suas vidas,
tanto quanto possível, mais momentos felizes e maior fortalecimento
de enlaces afetivos.
Há uma passagem
curiosa desse livro em que um emérito professor de psicologia
deixou, de forma verbal, seu “testamento vital” para o filho:
enquanto pudesse tomar sorvete de chocolate e assistir futebol na TV,
que se fizesse tudo o que estivesse ao alcance para mantê-lo vivo.
Observadas essas condições mínimas, para ele valeria a pena
continuar a viver. Isso assegurou ao filho tranquilidade na hora da
tomada das decisões nos momentos cruciais e, após a morte,
propiciou um luto mais tranquilo a todos os familiares.
Não faz 15 dias,
faleceu o inesquecível Luiz Carlos Miele. Miele, figura conhecida
de todos aqueles que contam mais 40 anos de idade, viveu
intensamente. Foi locutor de rádio, integrante da turma da Bossa
Nova, adorava a vida (especialmente a noturna), produziu inúmeros
shows. Enfim, comeu a vida com colher grande. Como morreu? De mal
súbito. Em um átimo, apagou-se a chama vital, “sem
dramas, sem gramas”.
Simples assim.
Se eu pudesse
escolher, gostaria de ter uma morte “miélica”. Morrer como um
passarinho, como diziam nossos avós. Não temo perder a vida. Temo
deixar para trás um passado de memórias de pessoas e fatos
maravilhosos.
Voltando ao filme
“Invasões Bárbaras”, Rémy, um professor universitário que
viveu sua vida de modo intenso e até libertino, reconcilia-se com o
filho e este, à revelia de sua vontade, mas amparado pela mãe
(ex-mulher de Rémy), proporciona-lhe um final tranquilo, numa casa
de campo, cercado de antigos amigos, tendo as dores da doença
edulcoradas por generosas doses de heroína contrabandeadas, a mesma
heroína que escolheu para ser o veículo de sua passagem para o
outro plano.
É um belíssimo
filme este “Invasões Bárbaras”. Tão belo quanto ele, a trilha
sonora escolhida (a música “L’amitié”,
de Jean-Max Rivière e Gérard Bourgeois, que não foi feita para o
filme (data de muitas décadas antes), mas se encaixou à perfeição
na trama).
Eis a letra da
canção, em tradução livre: “Muitos
de meus amigos vieram das nuvens./ Com o sol e a chuva como bagagem,/
Fizeram a estação da amizade sincera,/ A mais bela das quatro
estações da Terra.// Têm a doçura das mais belas paisagens/ E a
fidelidade dos pássaros migradores./ Em seu coração está gravada
uma ternura infinita,/ Mas, às vezes, uma tristeza aparece em seus
olhos.// Então, vêm se aquecer comigo./ E você também virá//
Poderá retornar às nuvens/ E sorrir de novo a outros rostos,/
Distribuir à sua volta um pouco de sua ternura./ Quando alguém
quiser esconder sua tristeza,// Como não sabemos o que a vida nos
dá,/ Talvez eu não seja ninguém./ Se me resta um amigo que
realmente me compreenda,/ Me esquecerei das lágrimas e penas.//
Então, talvez eu vá até você,/ Aquecer meu coração com sua
chama”.
Nestes dias, ando
lendo a maravilhosa autobiografia de Oliver Sacks ("Sempre
em movimento – Uma vida"
(Companhia das Letras)), neurologista vencido pelo câncer no dia 30
de agosto último, autor, dentre outras obras lindas, de “Tempo de
Despertar”, levada às telas de cinema em filme estrelado por Robin
Williams e Robert De Niro (Robin Williams viria a decretar o fim de
sua vida em agosto de 2014).
Sacks teve uma vida
incrivelmente intensa. Em entrevista que concedeu ao Jornal “New
York Times”,
em fevereiro deste ano, ocasião em que revelou seu estado terminal
de saúde, escreveu esta pérola que divido com os pacientes
leitores: “Agora,
cabe a mim escolher como viver os anos que me restam. [...]Tenho que
viver da maneira mais rica, intensa e produtiva possível. [...] Nos
últimos dias, pude ver minha vida de outro ângulo, como uma
paisagem, e com um forte senso de conexão entre as partes. Isso não
significa que me entreguei. Pelo contrário, me sinto intensamente
vivo, e eu quero e espero, no tempo que me resta, aprofundar minhas
amizades, me despedir das pessoas que amo, escrever mais, viajar se
eu tiver forças, e alcançar novos conhecimentos. Mas também haverá
tempo para um pouco de diversão (e até algumas tolices).
[...]
Não
posso fingir que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é
a gratidão. Eu amei e fui amado; doei-me e muito me foi dado; eu li,
viajei, pensei e escrevi. Eu me relacionei com o mundo, o
relacionamento especial entre escritores e leitores. Acima de tudo,
eu fui um ser humano ciente, um animal pensante, neste belo planeta,
e só isso já foi um enorme privilégio e aventura.”
Eis o meu testamento
vital: quero morrer como Rémy, de “Invasões Bárbaras”,
cercado pelos meus queridos, e animado pela coragem e pela altivez de
Oliver Sacks. . Ah! E se a trilha sonora puder ser “My
Way”,
interpretada por Elvis Presley, ou “Thank
You”,
do Led Zeppelin, seria fantástico!
Como não pretendo,
entretanto, deixar a vida tão cedo, finalizo lembrando a canção
“Stay
Around a Little Longer”
(https://www.youtube.com/watch?v=emyt-agLE_s),
dueto
de BB King (r.i.p.)
e
Buddy Guy, desde já agradecendo ao Senhor por me permitir ficar aqui
um pouco mais.