quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Mortais

MORTAIS


Eles estão se adiantando, os meus amigos./ Sei que é útil a morte alheia / para quem constrói seu fim./ Mas eles estão indo, apressados,/ deixando filhos, obras, amores inacabados/ e revoluções por terminar./ Não era isto o combinado.// Alguns se despedem heroicos,/ outros serenos./ Alguns se rebelam./ O bom seria partir pleno.// O que faço? Ainda agora/ um apressou seu desenlaçe./ Sigo sem pressa. A morte/ exige trabalho, trabalho lento// como quem nasce”. (“Estão se Adiantando”, Affonso Romano de Sant’Anna)




Estava decidido a escrever sobre um tema mais ameno. Alguma atualidade que vem sendo debatida nos jornais ou nas redes sociais, que andam prenhes de material. Refugiados sírios, feminismo no Enem, a carestia dos brasileiros, enfim. Eu até já havia concebido uma estória interessante sobre violência urbana e aplicativos de celulares (esta, aliás, uma boa estória, mas que ficará para uma próxima oportunidade, se me for concedida).
Mas, justamente hoje, assisti um filme a que há muito tempo me propus a assistir: “Invasões Bárbaras” (“Les invasions barbares”, de Denys Arcand, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro do ano de 2003) e que trata justamente da morte e daquilo que, no final de nossas vidas, realmente importa.
Já faz algum tempo que venho me preocupando com a morte, cuja melhor definição, a meu juízo, é a que Vinícius de Moraes cunhou em seu maravilhoso “Soneto da Fidelidade”: a “angústia de quem vive”. Quem vive sente angústia. Pode até não temer a morte, mas angústia sente, é induvidoso.
E por que me preocupo com a morte, se doente não estou, se meus familiares e amigos gozam de boa saúde? O que me parece é que, a partir de determinada idade (e, no meu caso, o marco fatal foi o advento de 40º aniversário), paramos de somar e começamos a subtrair: 30, 20, 10, 5 anos. “Ipso facto”, nos apegamos cada vez mais ao tempo que nos resta e que teima em nos escapar (“tempus fugit”, como diziam os antigos). A isso alio a idade de nossos pais, tios, avós, cuja contagem regressiva já vai mais avançada.
E, devo dizer, não só o medo da perda nos assombra, mas também o modo como os derradeiros dias nossos e de nossos amados serão vividos.
De fato, as pessoas, nos dias atuais, graças aos avanços da medicina moderna e à ganância da indústria farmacêutica, já não morrem mais “ex abrupto”: vão morrendo aos poucos, minguando, a chama vital mantendo-se acesa à força de intubações e outros métodos artificiosos. São raros os casos em que é dado a um moribundo expirar nos braços dos seus familiares e amigos, no lugar que escolheu, nas condições que elegeu para tanto, talvez ouvindo aquela canção que mais marcou a sua passagem por este plano. A tendência cada vez maior é mesmo a morte lenta e indigna nos leitos das UTIs, rodeados por equipamentos e circundado por outros pacientes na mesma condição desumana, tendo por fundo musical o “pi-pi-pi” dos monitores e engenhocas de sustentação da vida. Sustentação da vida? Qual vida? Sustentar o quê?
O tema foi tratado com invulgar humanismo pelo autor americano Dr. Atul Gawande em seu livro “Mortais” (cujo título foi tomado de empréstimo para este artigo). A obra narra casos de doenças terminais em que pacientes escolhem a terapia de “cuidados paliativos” no lugar dos “cuidados intensivos”, minimizando as dores e aflições dos momentos derradeiros e procurando agregar ao resto de suas vidas, tanto quanto possível, mais momentos felizes e maior fortalecimento de enlaces afetivos.
Há uma passagem curiosa desse livro em que um emérito professor de psicologia deixou, de forma verbal, seu “testamento vital” para o filho: enquanto pudesse tomar sorvete de chocolate e assistir futebol na TV, que se fizesse tudo o que estivesse ao alcance para mantê-lo vivo. Observadas essas condições mínimas, para ele valeria a pena continuar a viver. Isso assegurou ao filho tranquilidade na hora da tomada das decisões nos momentos cruciais e, após a morte, propiciou um luto mais tranquilo a todos os familiares.
Não faz 15 dias, faleceu o inesquecível Luiz Carlos Miele. Miele, figura conhecida de todos aqueles que contam mais 40 anos de idade, viveu intensamente. Foi locutor de rádio, integrante da turma da Bossa Nova, adorava a vida (especialmente a noturna), produziu inúmeros shows. Enfim, comeu a vida com colher grande. Como morreu? De mal súbito. Em um átimo, apagou-se a chama vital, “sem dramas, sem gramas”. Simples assim.
Se eu pudesse escolher, gostaria de ter uma morte “miélica”. Morrer como um passarinho, como diziam nossos avós. Não temo perder a vida. Temo deixar para trás um passado de memórias de pessoas e fatos maravilhosos.
Voltando ao filme “Invasões Bárbaras”, Rémy, um professor universitário que viveu sua vida de modo intenso e até libertino, reconcilia-se com o filho e este, à revelia de sua vontade, mas amparado pela mãe (ex-mulher de Rémy), proporciona-lhe um final tranquilo, numa casa de campo, cercado de antigos amigos, tendo as dores da doença edulcoradas por generosas doses de heroína contrabandeadas, a mesma heroína que escolheu para ser o veículo de sua passagem para o outro plano.
É um belíssimo filme este “Invasões Bárbaras”. Tão belo quanto ele, a trilha sonora escolhida (a música “L’amitié”, de Jean-Max Rivière e Gérard Bourgeois, que não foi feita para o filme (data de muitas décadas antes), mas se encaixou à perfeição na trama).
Eis a letra da canção, em tradução livre: “Muitos de meus amigos vieram das nuvens./ Com o sol e a chuva como bagagem,/ Fizeram a estação da amizade sincera,/ A mais bela das quatro estações da Terra.// Têm a doçura das mais belas paisagens/ E a fidelidade dos pássaros migradores./ Em seu coração está gravada uma ternura infinita,/ Mas, às vezes, uma tristeza aparece em seus olhos.// Então, vêm se aquecer comigo./ E você também virá// Poderá retornar às nuvens/ E sorrir de novo a outros rostos,/ Distribuir à sua volta um pouco de sua ternura./ Quando alguém quiser esconder sua tristeza,// Como não sabemos o que a vida nos dá,/ Talvez eu não seja ninguém./ Se me resta um amigo que realmente me compreenda,/ Me esquecerei das lágrimas e penas.// Então, talvez eu vá até você,/ Aquecer meu coração com sua chama”.
Nestes dias, ando lendo a maravilhosa autobiografia de Oliver Sacks ("Sempre em movimento – Uma vida" (Companhia das Letras)), neurologista vencido pelo câncer no dia 30 de agosto último, autor, dentre outras obras lindas, de “Tempo de Despertar”, levada às telas de cinema em filme estrelado por Robin Williams e Robert De Niro (Robin Williams viria a decretar o fim de sua vida em agosto de 2014).
Sacks teve uma vida incrivelmente intensa. Em entrevista que concedeu ao Jornal “New York Times”, em fevereiro deste ano, ocasião em que revelou seu estado terminal de saúde, escreveu esta pérola que divido com os pacientes leitores: “Agora, cabe a mim escolher como viver os anos que me restam. [...]Tenho que viver da maneira mais rica, intensa e produtiva possível. [...] Nos últimos dias, pude ver minha vida de outro ângulo, como uma paisagem, e com um forte senso de conexão entre as partes. Isso não significa que me entreguei. Pelo contrário, me sinto intensamente vivo, e eu quero e espero, no tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, me despedir das pessoas que amo, escrever mais, viajar se eu tiver forças, e alcançar novos conhecimentos. Mas também haverá tempo para um pouco de diversão (e até algumas tolices). [...] Não posso fingir que não tenho medo. Mas meu sentimento predominante é a gratidão. Eu amei e fui amado; doei-me e muito me foi dado; eu li, viajei, pensei e escrevi. Eu me relacionei com o mundo, o relacionamento especial entre escritores e leitores. Acima de tudo, eu fui um ser humano ciente, um animal pensante, neste belo planeta, e só isso já foi um enorme privilégio e aventura.”
Eis o meu testamento vital: quero morrer como Rémy, de “Invasões Bárbaras”, cercado pelos meus queridos, e animado pela coragem e pela altivez de Oliver Sacks. . Ah! E se a trilha sonora puder ser “My Way”, interpretada por Elvis Presley, ou “Thank You”, do Led Zeppelin, seria fantástico!

Como não pretendo, entretanto, deixar a vida tão cedo, finalizo lembrando a canção “Stay Around a Little Longer” (https://www.youtube.com/watch?v=emyt-agLE_s), dueto de BB King (r.i.p.) e Buddy Guy, desde já agradecendo ao Senhor por me permitir ficar aqui um pouco mais.

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