SOLIDÃO
Quem
não souber povoar a sua solidão, também não conseguirá isolar-se
entre a gente. (Charles
Beaudelaire)
Como de hábito,
acordou antes mesmo do toque do despertador. Abriu os olhos. A luz
do dia causou intenso incômodo, fazendo a pressão sobre a sua
cabeça ainda mais dolorosa. A estratégia era sempre a mesma:
cumprir as etapas passo a passo.
O primeiro era
sentar-se na cama. O segundo, vestir os chinelos e vencer os poucos
metros que o separam da cozinha, onde decerto o café forte ainda
fumegante deixado por Adelaide o espera.
Na sala, deteve-se
por um momento. Tudo em seu lugar, tudo em boa ordem. Na poltrona
de tecido puído, sobre a almofada vermelha, a gata Shana, paixão de
Mathilde, levantou sua cabeça e piscou duas vezes, como fazem os
gatos por costume.
Tomou o café com
muito vagar. O líquido tão amargo quanto necessário desceu como
que rasgando suas entranhas, resultado dos excessos etílicos das
últimas semanas.
Já no banheiro,
defrontou a sua imagem reproduzida no espelho. Não sofria de
autopiedade, mas ali procurava encontrar, ainda que por um milésimo
de segundo, algum reflexo do que fora outrora, antes da insidiosa
doença levar-lhe Mathilde.
As mãos trêmulas
procuraram as pílulas brancas dentro do frasco. Sim, porque a
ocasião pedia as pílulas brancas, não as vermelhas.
Já pensara, por
certo, em despejar o conteúdo alvirrubro inteiro, de uma só vez,
goela abaixo, para pôr fim à sua existência sem Mathilde.
Desistiu. A uma, porque ainda sentia uma certa culpa católica em
relação ao auto-extermínio (embora já não acreditasse em Deus ou
em qualquer outra entidade metafísica); a duas, porque Mathilde
certamente o reprovaria, ainda que o ato extremo viesse sob o
romântico pretexto de ir ao seu encontro (o que certamente seria
improvável, haja vista os caminhos certamente não coincidentes das
almas dos amentes).
Até Almeida, do
Departamento de Filosofia, havia conseguido êxito na empreitada
suicida. Almeida era um merda, e disso todo mundo sabia. Uma
unanimidade. Mas o suicídio tem a especial propriedade de emprestar
uma aura de santidade mesmo aos merdas e aos pusilânimes, adjetivos
que caíam muito bem ao Almedinha (não poucas vezes o havia flagrado
a olhar cobiçosamente as pernas de Mathilde).
Espargiu pelo rosto
a espuma de barbear. Achava digno de nota como, já a esta altura do
campeonato, os fios de barba bem alvos ainda teimavam em germinar por
sua face, como se seu corpo ainda pudesse produzir vida inédita,
ainda que vida inútil, como cabelo na face e as unhas que já não
tinham qualquer serventia.
Ligou a água tépida
do chuveiro. A sensação da água descendo pelo seu corpo provecto
era boa, como se alguém lhe fizesse carinhos pela nuca, pelo peito
imberbe, pelo sexo inerte entre as suas pernas muito brancas, fazendo
cócegas pelos tornozelos.
Apressou-se a vestir
o terno que Adelaide deixara passado sobre a cadeira, na antessala.
Já de saída, beijou, como de costume, a fotografia de Mathilde
sobre o piano, o mesmo piano em que ela se assentava para tocar as
Polonaises
de Chopin, afagou carinhosamente a grande cabeça peluda da gata,
certificando-se de que havia alimento suficiente.
Já na porta do
edifício, dezenas de repórteres, como abutres à espreita,
esperavam a sua saída, do que foi advertido pelo zeloso porteiro,
possibilitando a fuga pela porta de serviço. Homiziou-se no Bar do
Geraldinho, lugar insuspeito, onde, de um trago, bebeu de um conhaque
de alcatrão e pôs-se a enfrentar os ônibus, já um pouco
entorpecido pelo efeito da bebida.
Não muito distante,
no átrio da Universidade, não houve como fugir do assédio dos
muitos alunos que ali se acotovelavam. Foi ajudado pelos
funcionários que o conduziram até a cochia e dali para a pequena
porta que dava acesso ao palco. Abriu-a. Aplausos entusiasmados,
flashes
de câmeras fotográficas, rapazes e moças com seus muitos celulares
em riste, todos ansiosos pela primeira leitura de seu inédito
trabalho. Gente tanta! Por que não conseguem povoar a sua solidão?
Antes da leitura, pegou-se a sorrir. Lá bem no fundo do
anfiteatro, jurou que viu, por um átimo, Mathilde, em seu lindo e
discreto vestido cor de pêssego, o mesmo que usou no dia de sua
graduação. Ou seria apenas o efeito do conhaque de alcatrão?
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