quinta-feira, 17 de setembro de 2015

SOLIDÃO

SOLIDÃO


Quem não souber povoar a sua solidão, também não conseguirá isolar-se entre a gente. (Charles Beaudelaire)


Como de hábito, acordou antes mesmo do toque do despertador. Abriu os olhos. A luz do dia causou intenso incômodo, fazendo a pressão sobre a sua cabeça ainda mais dolorosa. A estratégia era sempre a mesma: cumprir as etapas passo a passo.
O primeiro era sentar-se na cama. O segundo, vestir os chinelos e vencer os poucos metros que o separam da cozinha, onde decerto o café forte ainda fumegante deixado por Adelaide o espera.
Na sala, deteve-se por um momento. Tudo em seu lugar, tudo em boa ordem. Na poltrona de tecido puído, sobre a almofada vermelha, a gata Shana, paixão de Mathilde, levantou sua cabeça e piscou duas vezes, como fazem os gatos por costume.
Tomou o café com muito vagar. O líquido tão amargo quanto necessário desceu como que rasgando suas entranhas, resultado dos excessos etílicos das últimas semanas.
Já no banheiro, defrontou a sua imagem reproduzida no espelho. Não sofria de autopiedade, mas ali procurava encontrar, ainda que por um milésimo de segundo, algum reflexo do que fora outrora, antes da insidiosa doença levar-lhe Mathilde.
As mãos trêmulas procuraram as pílulas brancas dentro do frasco. Sim, porque a ocasião pedia as pílulas brancas, não as vermelhas.
Já pensara, por certo, em despejar o conteúdo alvirrubro inteiro, de uma só vez, goela abaixo, para pôr fim à sua existência sem Mathilde. Desistiu. A uma, porque ainda sentia uma certa culpa católica em relação ao auto-extermínio (embora já não acreditasse em Deus ou em qualquer outra entidade metafísica); a duas, porque Mathilde certamente o reprovaria, ainda que o ato extremo viesse sob o romântico pretexto de ir ao seu encontro (o que certamente seria improvável, haja vista os caminhos certamente não coincidentes das almas dos amentes).
Até Almeida, do Departamento de Filosofia, havia conseguido êxito na empreitada suicida. Almeida era um merda, e disso todo mundo sabia. Uma unanimidade. Mas o suicídio tem a especial propriedade de emprestar uma aura de santidade mesmo aos merdas e aos pusilânimes, adjetivos que caíam muito bem ao Almedinha (não poucas vezes o havia flagrado a olhar cobiçosamente as pernas de Mathilde).
Espargiu pelo rosto a espuma de barbear. Achava digno de nota como, já a esta altura do campeonato, os fios de barba bem alvos ainda teimavam em germinar por sua face, como se seu corpo ainda pudesse produzir vida inédita, ainda que vida inútil, como cabelo na face e as unhas que já não tinham qualquer serventia.
Ligou a água tépida do chuveiro. A sensação da água descendo pelo seu corpo provecto era boa, como se alguém lhe fizesse carinhos pela nuca, pelo peito imberbe, pelo sexo inerte entre as suas pernas muito brancas, fazendo cócegas pelos tornozelos.
Apressou-se a vestir o terno que Adelaide deixara passado sobre a cadeira, na antessala. Já de saída, beijou, como de costume, a fotografia de Mathilde sobre o piano, o mesmo piano em que ela se assentava para tocar as Polonaises de Chopin, afagou carinhosamente a grande cabeça peluda da gata, certificando-se de que havia alimento suficiente.
Já na porta do edifício, dezenas de repórteres, como abutres à espreita, esperavam a sua saída, do que foi advertido pelo zeloso porteiro, possibilitando a fuga pela porta de serviço. Homiziou-se no Bar do Geraldinho, lugar insuspeito, onde, de um trago, bebeu de um conhaque de alcatrão e pôs-se a enfrentar os ônibus, já um pouco entorpecido pelo efeito da bebida.

Não muito distante, no átrio da Universidade, não houve como fugir do assédio dos muitos alunos que ali se acotovelavam. Foi ajudado pelos funcionários que o conduziram até a cochia e dali para a pequena porta que dava acesso ao palco. Abriu-a. Aplausos entusiasmados, flashes de câmeras fotográficas, rapazes e moças com seus muitos celulares em riste, todos ansiosos pela primeira leitura de seu inédito trabalho. Gente tanta! Por que não conseguem povoar a sua solidão? Antes da leitura, pegou-se a sorrir. Lá bem no fundo do anfiteatro, jurou que viu, por um átimo, Mathilde, em seu lindo e discreto vestido cor de pêssego, o mesmo que usou no dia de sua graduação. Ou seria apenas o efeito do conhaque de alcatrão?

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Sucesso e Justiça

SOBRE O SUCESSO E A JUSTIÇA




Tenho lido nas redes sociais e até em artigo de prestigiado jornalista global, por ocasião da morte de um cantor sertanejo, a respeito dos valores culturais de nossa sociedade e passei a refletir um pouco sobre os conceitos de “celebridade”, “sucesso”, “justiça” e “merecimento”.
Quando o acidente que vitimou o artista sertanejo Cristiano Araújo ganhou os jornais e mereceu ampla divulgação, muitos questionaram sobre o sucesso da desditosa vítima e como aquela notícia poderia se sobrepor a outras “mais importantes” para os brasileiros, haja vista o momento de “sofrência” pelo qual passamos.
Veio-me à mente o sucesso meteórico de Michel Teló e a sua canção “Ai Se Eu Te Pego”.
Há poucos meses, estava eu na “Festa do Rei”, em Amsterdam (o equivalente holandês ao nosso carnaval) quando, do alto de um “trio elétrico”, um artista local entoou a canção de Teló. Não se tratava, à evidência, de um cantor brasileiro. O público, em uníssono, cantou a música de cabo a rabo, sem errar uma estrofe (tudo bem que não são tantas estrofes assim), emprestando-lhes o sotaque local.
Tem mérito Teló? Tem mérito Cristiano Araújo? O que é mérito? O que é sucesso? O que é merecimento?
Historicamente, tem-se percebido que o sucesso é obtido quando o produto do pensamento se ajusta aos valores prestigiados por uma comunidade. Nesse sentido, Teló e seu 'hit' fazem jus ao prêmio não porque sejam merecedores. Merecimento pouco tem a ver com justiça, pois, caso essa premissa fosse verdadeira, professores ganhariam mais do que o Faustão, p.ex..
A justiça consiste em fazer com que o sucesso sirva como móvel para o desenvolvimento dos menos aquinhoados pelas arbitrariedades naturais (um professor dificilmente saberia cantar uma canção como 'Ai Se Eu Te Pego', assim como um talentoso pintor italiano de afrescos). A Justiça, nesse caso, consiste em taxar mais pesadamente os rendimentos auferidos com o êxito, promovendo a "justiça distributiva", bem assim com o pagamento dos direitos autorais aos proprietários da obra intelectual (que pode ser o intérprete ou o compositor).
O sucesso advém, no mais das vezes, de arbitrariedades naturais como, p.ex., nascer em família de melhor posição, ter mais tempo para o estudo, ser bonito, saber cantar etc. Não se igualam tais arbitrariedades aleatórias e naturais com a colocação de freios no sucesso com elas obtido (o que seria intervenção indevida na liberdade alheia), mas mediante medidas compensatórias que favoreçam aos menos aquinhoados.
Michel Teló e Cristiano Araújo fazem jus ao prêmio da forma mais legítima, porque seguiram as regras do jogo e ponto. Pode-se criticar o valor intrínseco da obra musical, mas o êxito, jamais, desde que as regras do jogo tenham sido seguidas à risca, de forma ética e de acordo com o que convém ao gosto e ao anseio da sociedade, o que é o caso.
É a sociedade quem dirá quem fará jus ao prêmio (isso nada tem a ver com "merecimento moral", repito), cabendo a justiça usar o fruto do sucesso para promover o bem geral.

Em síntese: SUCESSO TELÓ!, SUCESSO LUAN!, SUCESSO ANITTA!, SUCESSO IVETE!

Semana da Pátria - "Sob Escombros"

SOB ESCOMBROS




O ano: 2723 D.C.. O local: Algum lugar entre o ressequido leito do que outrora fora o Rio Oiapoque e o deserto do Chuí, ao norte do Uruguai. Ali, quase um século passado da hecatombe que dizimou centenas de milhões de pessoas famintas, resultado fatal do “efeito estufa”, um grupo de arqueólogos brasileiros debruça-se sobre uma descoberta interessantíssima: um pequeno cofre contendo arquivos magnéticos provavelmente datados do século XXI, que se encontrava sob escombros de uma antiga construção.
O material foi levado pelos cientistas com muito cuidado para os laboratórios da Universidade de São Paulo onde, após laboriosos exames de radiocarbono, chegou-se à conclusão de que datava, todo ele, do ano de 2015.
O material era composto basicamente por jornais digitalizados (método arcaico de armazenamento de grandes quantidades de informações), escritos e músicas daquela época.
Dentre as manchetes dos jornais de então liam-se as seguintes: “Governo prevê déficit de R$ 31 bilhões e aumento de tributos”, “Feliciano será candidato a prefeito de São Paulo”, “Dilma proporá a recriação da CPMF”, “PIB recua e recessão se alonga”, “Crise eleva endividamento dos municípios”, “Petrolão pode ter causado rombo de 80 bilhões”, “Investimento despenca e sinaliza mais longa retração desde o real”, “Inflação corrói salários em 15% dos reajustes”.
Todo material é encaminhado ao Departamento de História da Universidade de Federal do Amazonas, no sertão semi-árido brasileiro (em tempos idos, o que já fora a maior floresta equatorial do planeta). Os historiadores tinham muitas dúvidas a respeito de período histórico a que se referiam as notícias jornalísticas.
É que, muito embora o material tivesse idade certa, o colecionador, de forma proposital e misteriosa, havia eliminado as datas dos periódicos e escrito, em letras garrafais, o aforisma de Sócrates: “nosce te ipsum” (“conhece-te a ti mesmo”).
Todavia, como praticamente todas as notícias mencionavam, de forma direta ou indireta, a Polícia Federal, tudo foi reencaminhado imediatamento à sede do Departamento na capital brasileira, situada no pantanal alagadiço brasiliense (antes, aquela que fora uma região pouco aquinhoada pelas chuvas), onde peritos forenses e historiadores da Universidade de Brasília iniciaram seus estudos.
As dúvidas persistiam porque, em maior ou menor grau, todos os casos policialescos se assemelhavam a outros historicamente situados em épocas muito próximas uma das outras.
O escândalo do Petrolão (2015) foi associado ao do Mensalão (2005) e este, por sua vez, à Operação Satiagraha (2004). A menção ao nome do Deputado Federal Eduardo Cunha conduziu o rumo das investigações para a figura do então Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, cujo escândalo particular datava, entretanto, de 2007 e envolvia a suposta ajuda de empreiteiros baianos no pagamento de pensão alimentícia a uma sua filha.
As investigações passaram a focar, portanto, no Congresso Nacional, porque não convém tornar a coisa pessoal.
Nos arquivos policiais, a relação mais aproximada que se conseguiu estabelecer com a Casa de Leis foi com o episódio dos “Anões do Orçamento”, de 1993 e com a pitoresca figura de um deputado baiano que havia tido a fortuna de ser premiado em 200 sorteios de loteria.
É nesse ponto que o caso se aproximou perigosamente do escândalo Coroa Brastel, de 1983. Estabelecido o intervalo de mais de trinta anos entre os arquivos encontrados e os casos catalogados, chegaram os pesquisadores à conclusão de que o melhor mesmo era dar tudo por visto e encerrado e mandar arquivar o material digitalizado nos escaninhos da Biblioteca Nacional, na Cidade do Rio de Janeiro.
Toda a estória que acima narrei passeia por diversos eventos históricos que sacudiram o Brasil ao longo de mais de trinta anos. E muitos outros há, datados da velha república, do regime ditatorial, e mesmo na época do Brasil ainda colônia se Portugal, com a espoliação do patrimônio autóctone promovida pela pátria-mãe e destinada às burras inglesas, espanholas, holandesas e francesas.
Acredito que o ponto central da estória talvez não tenha sido apreendido pela maioria dos leitores e que reside no pormenor de haver o colecionador de histórias eliminado as datas das notícias e escrito em letras garrafais a máxima socrática “nosce te ipsum” (“conhece-te a ti mesmo”), supostamente inscrita na entrada do Oráculo de Delfos.
Para Sócrates, conhecer-se é o ponto de partida para uma vida de equilíbrio. Se isso vale para pessoas, vale por certo também para instituições e nações.
O Brasil passa por momentos bastante difíceis e as perspectivas não são nada otimistas. Se tudo der certo, o ano de 2016 será tão ou pior para os brasileiros que o de 2015. Desemprego, queda do poder de compra, o recrudescimento do monstro da inflação, a indústria nacional reduzida a pó, o alargamento do abismo entre os muito pobres e os muito ricos. Desigualdade, miséria, violência, déficit civilizatório.
A mais triste notícia, todavia, é que todas as agruras pelas quais o povo brasileiro será obrigado a amargar poderiam ter sido evitadas. São todas elas tragédias anunciadas. Têm a ver, sim, com os sucessivos escândalos narrados sinteticamente na ficção de abertura deste trabalho, mas também com os remédios que vêm sendo ministrados para tentar trazer algum lenitivo à doença.
O Brasil, ao longo de seus pouquíssimos séculos de vida, teima em não aprender com as lições que a história lhe proporcionou e continua a lhe proporcionar a curtos intervalos. Corrupção, fisiologismo político, pilhagem do patrimônio público, promiscuidade entre o empresariado e o Poder Público, confusão entre o que é privado e o que é público, soluções de curto prazo para questões atávicas (que só fazem atrasar o crescimento), personalização do poder (talvez a grande herança maldita de nosso berço ibérico) são apenas alguns erros recorrentes de nossos próceres.
E a raiz de praticamente tudo está na precária educação que é subministrada aos governados e que se manifesta em todos os estamentos. Em recentes manifestações sociais, foram vistas pautas absurdas como a intervenção militar. Será que não aprendemos a nos conhecer a nós mesmos?
E a quem aproveita a eterna, cafona e démodé “summa divisio” política de “esquerda” e “direita”, posições que não fazem a menor diferença quando a vaca está indo para o brejo? A necessidade carece de dissensões. Quando o barco afundar, qual importância terá o lado que você ocupará no naufrágio? Solidariedade, diálogo, união é o que precisamos quando a coisa não está indo bem.
Falta-nos educação. Educação formal e educação como valor, como princípio, o único princípio capaz de trazer igualdade substancial (não igualdade de riquezas, mas de oportunidades). Sem educação não há memória. Sem memória, não há como cumprir o ideário socrático de nos conhecermos a nós mesmos para, somente então, não repetirmos os erros do passado.
Voltando à estória que narrava no início deste já longo discurso, no material arrecadado sob os escombros havia também, junto à coleção de manchetes atemorizadoras e ao adágio socrático, o seguinte trecho de um notável brasileiro chamado Ruy Barbosa, talvez o melhor coco que a Bahia já nos legou:
A pátria não é ninguém; são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à ideia, à palavra, à associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo; é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade.”
E havia também uma canção de um artista precocemente morto, cujo nome era Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido por Cazuza. A música chamava-se “Brasil” e no último verso trazia a seguinte mensagem: “Grande pátria desimportante, em nenhum instante eu vou te trair.”
Nós, brasileiros, jamais trairemos a nossa grande pátria.
Salve a semana da pátria!

(setembro de 2015)