SOB
ESCOMBROS
O ano: 2723 D.C.. O local: Algum lugar entre o
ressequido leito do que outrora fora o Rio Oiapoque e o deserto do
Chuí, ao norte do Uruguai. Ali, quase um século passado da
hecatombe que dizimou centenas de milhões de pessoas famintas,
resultado fatal do “efeito estufa”, um grupo de arqueólogos
brasileiros debruça-se sobre uma descoberta interessantíssima: um
pequeno cofre contendo arquivos magnéticos provavelmente datados do
século XXI, que se encontrava sob escombros de uma antiga
construção.
O material foi levado pelos cientistas com muito cuidado
para os laboratórios da Universidade de São Paulo onde, após
laboriosos exames de radiocarbono, chegou-se à conclusão de que
datava, todo ele, do ano de 2015.
O material era composto basicamente por jornais
digitalizados (método arcaico de armazenamento de grandes
quantidades de informações), escritos e músicas daquela época.
Dentre as manchetes dos jornais de então liam-se as
seguintes: “Governo prevê déficit de R$ 31 bilhões e aumento de
tributos”, “Feliciano será candidato a prefeito de São Paulo”,
“Dilma proporá a recriação da CPMF”, “PIB recua e recessão
se alonga”, “Crise eleva endividamento dos municípios”,
“Petrolão pode ter causado rombo de 80 bilhões”, “Investimento
despenca e sinaliza mais longa retração desde o real”, “Inflação
corrói salários em 15% dos reajustes”.
Todo material é encaminhado ao Departamento de História
da Universidade de Federal do Amazonas, no sertão semi-árido
brasileiro (em tempos idos, o que já fora a maior floresta
equatorial do planeta). Os historiadores tinham muitas dúvidas a
respeito de período histórico a que se referiam as notícias
jornalísticas.
É que, muito embora o material tivesse idade certa, o
colecionador, de forma proposital e misteriosa, havia eliminado as
datas dos periódicos e escrito, em letras garrafais, o aforisma de
Sócrates: “nosce te ipsum” (“conhece-te a ti mesmo”).
Todavia, como praticamente todas as notícias
mencionavam, de forma direta ou indireta, a Polícia Federal, tudo
foi reencaminhado imediatamento à sede do Departamento na capital
brasileira, situada no pantanal alagadiço brasiliense (antes, aquela
que fora uma região pouco aquinhoada pelas chuvas), onde peritos
forenses e historiadores da Universidade de Brasília iniciaram seus
estudos.
As dúvidas persistiam porque, em maior ou menor grau,
todos os casos policialescos se assemelhavam a outros historicamente
situados em épocas muito próximas uma das outras.
O escândalo do Petrolão (2015) foi associado ao do
Mensalão (2005) e este, por sua vez, à Operação Satiagraha
(2004). A menção ao nome do Deputado Federal Eduardo Cunha
conduziu o rumo das investigações para a figura do então
Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, cujo escândalo
particular datava, entretanto, de 2007 e envolvia a suposta ajuda de
empreiteiros baianos no pagamento de pensão alimentícia a uma sua
filha.
As investigações passaram a focar, portanto, no
Congresso Nacional, porque não convém tornar a coisa pessoal.
Nos arquivos policiais, a relação mais aproximada que
se conseguiu estabelecer com a Casa de Leis foi com o episódio dos
“Anões do Orçamento”, de 1993 e com a pitoresca figura de um
deputado baiano que havia tido a fortuna de ser premiado em 200
sorteios de loteria.
É nesse ponto que o caso se aproximou perigosamente do
escândalo Coroa Brastel, de 1983. Estabelecido o intervalo de mais
de trinta anos entre os arquivos encontrados e os casos catalogados,
chegaram os pesquisadores à conclusão de que o melhor mesmo era dar
tudo por visto e encerrado e mandar arquivar o material digitalizado
nos escaninhos da Biblioteca Nacional, na Cidade do Rio de Janeiro.
Toda a estória que acima narrei passeia por diversos
eventos históricos que sacudiram o Brasil ao longo de mais de trinta
anos. E muitos outros há, datados da velha república, do regime
ditatorial, e mesmo na época do Brasil ainda colônia se Portugal,
com a espoliação do patrimônio autóctone promovida pela
pátria-mãe e destinada às burras inglesas, espanholas, holandesas
e francesas.
Acredito que o ponto central da estória talvez não
tenha sido apreendido pela maioria dos leitores e que reside no
pormenor de haver o colecionador de histórias eliminado as datas das
notícias e escrito em letras garrafais a máxima socrática “nosce
te ipsum” (“conhece-te a ti mesmo”), supostamente inscrita na
entrada do Oráculo de Delfos.
Para Sócrates, conhecer-se é o ponto de partida para
uma vida de equilíbrio. Se isso vale para pessoas, vale por certo
também para instituições e nações.
O Brasil passa por momentos bastante difíceis e as
perspectivas não são nada otimistas. Se tudo der certo, o ano de
2016 será tão ou pior para os brasileiros que o de 2015.
Desemprego, queda do poder de compra, o recrudescimento do monstro da
inflação, a indústria nacional reduzida a pó, o alargamento do
abismo entre os muito pobres e os muito ricos. Desigualdade,
miséria, violência, déficit civilizatório.
A mais triste notícia, todavia, é que todas as agruras
pelas quais o povo brasileiro será obrigado a amargar poderiam ter
sido evitadas. São todas elas tragédias anunciadas. Têm a ver,
sim, com os sucessivos escândalos narrados sinteticamente na ficção
de abertura deste trabalho, mas também com os remédios que vêm
sendo ministrados para tentar trazer algum lenitivo à doença.
O Brasil, ao longo de seus pouquíssimos séculos de
vida, teima em não aprender com as lições que a história lhe
proporcionou e continua a lhe proporcionar a curtos intervalos.
Corrupção, fisiologismo político, pilhagem do patrimônio público,
promiscuidade entre o empresariado e o Poder Público, confusão
entre o que é privado e o que é público, soluções de curto prazo
para questões atávicas (que só fazem atrasar o crescimento),
personalização do poder (talvez a grande herança maldita de nosso
berço ibérico) são apenas alguns erros recorrentes de nossos
próceres.
E a raiz de praticamente tudo está na precária
educação que é subministrada aos governados e que se manifesta em
todos os estamentos. Em recentes manifestações sociais, foram
vistas pautas absurdas como a intervenção militar. Será que não
aprendemos a nos conhecer a nós mesmos?
E a quem aproveita a eterna, cafona e démodé “summa
divisio” política de “esquerda” e “direita”, posições
que não fazem a menor diferença quando a vaca está indo para o
brejo? A necessidade carece de dissensões. Quando o barco afundar,
qual importância terá o lado que você ocupará no naufrágio?
Solidariedade, diálogo, união é o que precisamos quando a coisa
não está indo bem.
Falta-nos educação. Educação formal e educação
como valor, como princípio, o único princípio capaz de trazer
igualdade substancial (não igualdade de riquezas, mas de
oportunidades). Sem educação não há memória. Sem memória, não
há como cumprir o ideário socrático de nos conhecermos a nós
mesmos para, somente então, não repetirmos os erros do passado.
Voltando à estória que narrava no início deste já
longo discurso, no material arrecadado sob os escombros havia também,
junto à coleção de manchetes atemorizadoras e ao adágio
socrático, o seguinte trecho de um notável brasileiro chamado Ruy
Barbosa, talvez o melhor coco que a Bahia já nos legou:
“A pátria não é ninguém; são todos; e cada
qual tem no seio dela o mesmo direito à ideia, à palavra, à
associação. A pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um
monopólio, nem uma forma de governo; é o céu, o solo, o povo, a
tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo
dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade.”
E havia também uma canção de um artista precocemente
morto, cujo nome era Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido
por Cazuza. A música chamava-se “Brasil” e no último verso
trazia a seguinte mensagem: “Grande pátria desimportante, em
nenhum instante eu vou te trair.”
Nós, brasileiros, jamais trairemos a nossa grande
pátria.
Salve a semana da pátria!
(setembro de 2015)
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