quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

SENTENÇA – ESTUPRO DE VULNERÁVEL – CONSENTIMENTO – ABSOLVIÇÃO – COMARCA DE QUARAÍ – TJ/RS

COMARCA DE QUARAÍ
VARA JUDICIAL
Rua Acauan, 320
ESPÉCIE: Art. 217-A, caput, do Código Penal.
PROCESSO N°: 061/2.09.0000972-5.
AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO.
RÉU: C. A. C. G.
JUÍZA PROLATORA: LUCIANE INÊS MORSCH GLESSE.
DATA DA SENTENÇA: 05  de abril de 2011.
VISTOS...

C. A. C. G., alcunha “Careca”, brasileiro, solteiro, natural da Cidade de Quaraí-RS, nascido em 27/08/1987, filho de (...) foi denunciado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, com base no Inquérito Policial n.º 763/09-151411-A, oriundo da Delegacia de Polícia local, como incurso nas sanções do artigo 217-A, caput, do Código Penal, pela prática do seguinte fato delituoso:

“Desde data não determinada, até o dia 28 de setembro de 2009, na Avenida Floresta n.º 174, nesta Cidade, o denunciado C. A. C. G., em diversas ocasiões, teve conjunção carnal e praticou outros atos libidinosos com a vítima J. C. M. V. M. B., que possuía, na última oportunidade, 12 anos de idade.  Nas ocasiões, o denunciado, valendo-se do fato de que a vítima não se encontrava sob os cuidados e a vigilância de sua genitora, convencia a vítima a permitir que com ela praticasse sexo vaginal e outros atos libidinosos.  A vítima foi submetida à avaliação psicológica (fls. 14/15-IP) e exame de corpo de delito, cujo laudo foi juntado à fl. 17-IP.”

Recebida a denúncia em 18/03/2010 (fl. 51).

Citado o réu (fl. 59), foi nomeado defensor dativo (fl. 64)  que apresentou defesa prévia, requerendo, preliminarmente, o desentranhamento de documentos que não dizem respeito ao feito. No mérito, pugnou pela  improcedência da denúncia, negando a autoria do delito, referindo que o réu era namorado da vítima. Nega que tenha desvirginado a vítima, postulando a absolvição. Postulou a apresentação de todo o gênero de provas em direito admitidos. (fls. 65/66).

Analisada a defesa prévia, foi determinado o prosseguimento da ação ante a ausência de prova cabal de causa excludente da ilicitude, culpabilidade ou extinção da punibilidade (fl. 69).

Realizada audiência de instrução, foram ouvidas a vítima, duas testemunhas de acusação e interrogado o réu. Foi declarada encerrada a instrução e substituídos os debates orais por memoriais escritos (fls. 78/94).

Em alegações finais, o Ministério Público requereu a condenação do acusado (fls. 96/103).

A defesa apresentou as alegações finais (fls. 105/110),  requerendo improcedência da denúncia.

Atualizados os antecedentes do réu (fls. 111/112).

Vieram os autos conclusos para sentença.

É o relatório.

DECIDO.

Inicialmente, quanto a preliminar alegada na  defesa preliminar, a mesma já foi objeto de decisão à fl. 69.

A  MATERIALIDADE delitiva restou demonstrada pelo boletim de ocorrência (fl. 07), auto de exame de corpo de delito (fls. 21 e 47).

No que tange a  AUTORIA, embora confirmado pelo réu que manteve relações sexuais, constato que a vítima, em que pese, tenha afirmado em  Juízo que o réu “meio que forçava” para que se relacionassem sexualmente, apresentou um testemunho bastante contraditório, deixando dúvidas quanto a ausência de consentimento.

Ressalto que, entendo necessária a análise do consentimento da vítima ou no caso a violência presumida, a qual nos dias atuais é plenamente questionável ante sua relativização.

Neste sentido já manifestou o STJ:

“(...) Crime contra a liberdade sexual (estupro). Menor de 14 anos (presunção de violência
relativa). Consentimento válido da menor (relevância).  1. É missão fundamental do Penal tutelar bens jurídicos, todavia a sua intervenção depende de efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem tutelado pela norma. Não há responsabilidade penal por ato de outrem, tampouco por ato inexistente.
2. Reputa-se relativa a violência presumida disposta no inciso a do art. 224 do Cód. Penal.
3. O principal fundamento da intervenção jurídicopenal no domínio da sexualidade há de ser a proteção contra o abuso e  contra a violência sexual de homem ou mulher, e não contra atos sexuais que se baseiem em vontade livre e consciente.
4. No caso, o consentimento não-viciado e o livre convencimento da menor de 14 anos para a prática da conjunção carnal com o namorado elidem a tipificação do crime de estupro.
5. Recurso do qual se conheceu pelo dissídio, mas ao qual se negou provimento.
(Resp n. 542324  – BA, Sexta Turma do STJ, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa  – rel. p/Acórdão Min. Nilson Naves, j. em 09.12.2005, obtido em pesquisa no sítio do STJ, publicação DJ: 14.04.2008, p. 1). (…)” (sublinhei)

Ocorre que, embora a vítima tenha afirmado que o réu foi o primeiro com quem manteve relações sexuais, ainda assim, existem dúvidas de que não tenha consentido, mormente pelo depoimento várias vezes contraditório, pois ao ser questionada se gostava do réu, disse que um pouco e que ele “meio que forçava” para que transassem, mantendo relações porque ele ameaçava terminar o relacionamento, entretanto, quando perguntado se queria continuar namorando com o réu, respondeu que não. Ora, se uma pessoa não tem interesse em seguir mantendo um relacionamento amoroso, não teria motivo para se intimidar ao ser ameaçada pelo término do namoro.

Outra situação bastante dúbia é quanto a afirmação de cárcere privado, não sendo crível que uma pessoa, principalmente sendo menor tenha ficado tanto tempo na casa do réu sem que a genitora tomasse alguma providência, a qual ao ser questionada, disse (fls. 85-v/88):
“(...) Ministério Público: Quando a Srª deixou ela namorar ele frequentava a sua casa normalmente? Testemunha: Ele namorou ela poucos dias em casa e depois. Ministério Público: Ele levou ela para a casa dele? Testemunha: Sim Sr. (...) Ministério Público: Durante quanto tempo ele ficou com ela na casa dele? Testemunha: Não lembro.” 

Dessarte, muito estranho que tendo a filha ficado meses, contra a vontade, na casa do namorado, sem que a  mãe sequer soubesse quanto tempo ela permaneceu com o réu. Não há como entender o porquê de a mãe não ter alertado as autoridades competentes.
Com efeito, a versão da vítima e sua genitora caem por terra, quando ouvida a testemunha Carem Alessandra da Silva, Conselheira Tutelar que atendeu o caso (fls. 88-v/90):
“Eu fui chamada pela mãe da menina eu estava de plantão que a menina teria saído de casa e estaria com um rapaz de vinte três ou vinte quatro anos. (...) Juíza de Direito: E chegando na casa desse moço o que vocês constataram? Testemunha: Ele demorou um pouco para abrir a porta perguntando o que queriam e nós entramos e a menina estava escondida no banheiro abaixada. Juíza de Direito: E por que estava escondida? Testemunha: Porque ela não queria voltar para casa. (...) Nesta noite fui eu, mas na outra noite eu estava de folga mas eu soube que a minha colega teria atendido que ela teria disparado para um campo. Juíza de Direito: E ela chegou a falar alguma coisa no caminho? Testemunha: Falou que não queria ir, bem rebelde, queria ficar com o namorado. (...) Juíza de Direito: O que mais ela falou? Se ele teria levado ela a força? Testemunha:  Não, ele teria convidado e ela aceitou ela estava muito brava e agressiva e não queria falar. (...) Juíza de Direito: Ela não gostava ou queria ficar na casa do namorado? Testemunha: Sim queria ficar na casa. (...) Juíza de Direito: Vocês atenderam a Julia outras vezes? Testemunha: Sim, várias vezes. (...) São várias coisas envolvendo coisas com meninos. Juíza de Direito: Desde que idade ela se envolvia com meninos? Testemunha: Desde os onze. Juíza De Direito: E era outros meninos ou era esse menino aqui? Testemunha: Era um menino que tinha uns doze anos talvez, mas o mais impacto foi esse rapaz aí. (...) Juíza de Direito: Não tinha nada de ela falar que ela gostava de ter relações sexuais ou tinha alguma coisa? Testemunha: Ela é uma menina meio largada pela mãe assim, não tem aquela as vezes ela fugia ficava em outras casas. Juíza de Direito: De outros meninos? Testemunha: É mais pequenos. (...) Defesa: Tu confirmas então que ela era uma menina largada? Testemunha: Sim, exatamente com essas palavras. Defesa: Tu diz que as vezes ela ficava em outras casas, e nessas outras casas com meninos? Testemunha: Ela fugia e quando nós a achávamos ela tinha outros meninos meio da idade dela assim. (...) Defesa: Quer dizer que a Júlia é uma menina que há tempos vinha dando problemas? Testemunha: Sim, tem vários relatórios dela. Defesa: Vários relatórios dela, sempre envolvendo namoros e meninos? Testemunha: Sim.”

Assim, diante do contexto probatório, resta duvidoso o depoimento da vítima e sua genitora, assim como a alegada violência presumida, pois sabe-se que nos dias atuais, os jovens, cada vez mais cedo tem conhecimento sobre o sexo, o que restou verificado no caso em comento, uma vez que J. já teve vários registros no Conselho Tutelar justamente pelo envolvimento com outros meninos.

Assim manifestou o eminente Des. Aymoré Roque Pottes de Mello, ao relatar a Apelação Crime nº 70028249225:

“(...)registro que a doutrina e a jurisprudência dividem-se sobre a relativização da presunção de violência nos delitos sexuais.  Neste sentido, há setores que têm sustentado a viabilidade de tal presunção ceder ante algumas circunstâncias, tais como a experiência sexual anterior da vítima, a sua maturidade em se determinar no campo sexual e a sua compleição física. Contudo, mesmo os que não admitem a relativização, quedam-se ante a possibilidade da ocorrência do erro de tipo nas circunstâncias em que o agente mantém relações sexuais com a vítima, presumindo-a com idade superior a 14 anos, em razão da sua aparência e desenvoltura.  Tudo isto em virtude da constatação de que a postura dos jovens nos dias atuais em relação à sexualidade é bem diferente – e não teria como ser de outra forma – da atitude dos jovens de 1940, data da edição do C.P.B.  Os frequentes estímulos que a modernidade lhes propicia, a quantidade cada vez maior de informações, a mudança dos costumes, a “revolução sexual” dos anos 1960 e 1970, enfim, tudo leva a crer que a moral sexual dos dias de hoje é bem diferente daquela vigente nos anos 1940. Assim, entendo que esta realidade deve ser considerada, caso a caso, para avaliar a pertinência da presunção de violência, não bastando mais o critério de tabula rasa do art. 224, alínea “a” do C.P.B.  Pensar de modo diverso, seria virar as costas à realidade social, o que não deve ser admitido em Direito, já que este deve acompanhar à sociedade e não o contrário.” 

Logo, constatado que o acusado manteve relações sexuais com a vítima de forma consentida, sem que tenha existido ameaça ou violência, tal consentimento, mostra-se relevante, não havendo, portanto, provas suficientes para um édito condenatório, sendo  impositiva a improcedência da denúncia.

Neste diapasão:

“AC Nº 70.028.249.225 AC/M 2.187  S 30.04.2009 P
15 (M) APELAÇÃO CRIMINAL. ESTUPRO COM VIOLÊNCIA PRESUMIDA. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE INDICA A POSSIBILIDADE DA VÍTIMA CONSENTIR COM O ATO SEXUAL. PARTICULARIDADES DO CASO CONCRETO E DA PROVA QUE DETERMINAM O AFASTAMENTO DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPUNHA. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. APELO IMPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70028249225, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em 30/04/2009)”

Isso posto,  JULGO IMPROCEDENTE a denúncia e ABSOLVO o réu C. A. C. G. das sanções do delito previsto no art. 217-A do Código Penal, com base no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.

Arbitro a verba honorária em favor do defensor dativo nomeado (fl. 64) em R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais), nos termos do Ato nº 031/2008-P, a serem suportados pelo TJERGS.

Com o trânsito em julgado, arquive-se com baixa.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Quaraí, 05 de abril de 2011.


Luciane Inês Morsch Glesse,
Juíza de Direito.

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