Vistos.
*********** e ********* formularam requerimento de habilitação para o casamento civil ao qual acostaram documentos (fls. 01/06).
Às fls. 08/09 manifestação Ministerial apontando não haver interesse que justifique sua intervenção no caso em testilha.
É o relatório.
Fundamento e decido.
O casamento civil, ao lado do casamento religioso com efeitos civis, é mencionado no texto constitucional pátrio no corpo do art. 226, que trata da família, como base da sociedade e objeto de especial proteção do Estado, sem que ali, por óbvio, estabeleçam-se seus requisitos de existência e validade.
Atualmente, seu regramento infraconstitucional é dado pelos arts. 1511 e seguintes, do Código Civil, certo que nenhum dos dispositivos constantes desse “codex” expressamente prevê os requisitos de existência desse “negócio de direito de família”, na expressão de MARIA BERENICE DIAS1, sobretudo o de diversidade de sexo dos nubentes.
Essa ausência de referência leva a duas conclusões e, assim, posicionamentos diametralmente opostos na Doutrina:
a) não há qualquer impedimento, quer na Constituição Federal, quer no Código Civil, ao casamento civil homoafetivo, como defende a precitada autora;2
b) existe óbice advindo da redação do art. 226, da Constituição Federal, porque a família só merece proteção tamanha — tanto que o casamento civil é gratuito —, enquanto redundar na preservação do Estado, e isso só é viável para aqueles que podem gerar filhos, biologicamente, pelos métodos naturais, como sustenta IVES GANDRA DA SILVA MARTINS3; ou o obstáculo estaria mesmo na exegese dos arts. 1514, 1535, 1551, 1565, e 1567, todos do Código Civil, que, pese embora não estabeleçam diretamente que o casamento civil só pode ser convolado por um homem com uma mulher, mencionam que se terá como celebrado o matrimônio quando “homem” e “mulher”, manifestado seu propósito perante o juiz, pessoalmente ou por procuradores, ele os declarar casados (arts. 1514 e 1535, do Código Civil); que o casamento anulável por vício de idade não será declarado como tal se dele resultar “gravidez” (art. 1551, do diploma legal retrocitado); que pelo casamento, “homem” e “mulher” assumem a condição de consortes (art. 1565, do mesmo “codex”); e que a direção da sociedade advinda do casamento será produto da cooperação entre “homem” e “mulher”;
Vale mencionar ainda a posição adotada por LUIS EDSON FACHIN4, pela qual a partir da decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, no dia 05 de maio de 2011, é possível o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo desde que seja precedido por união estável nele convertida.
“Ab initio”, afigura-se salutar relembrar que o texto constitucional de 1988, como sói acontecer, não definiu o casamento, nem sequer seus elementos e requisitos, e, de igual, não teceu conceituação fechada do que seja família.
O que se observa da leitura daquele diploma é que cuidou ele de erigir a igualdade e a liberdade a direitos e garantias fundamentais, asseverando que são objetivos (art. 3º), também fundamentais, da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, ressaltando, outrossim, que um dos fundamentos deste Estado é o da dignidade da pessoa humana.
Nessa linha, ainda, o referido texto estabelece o Brasil como país laico, com absoluta liberdade de crença religiosa, se crença houver (art. 5º, inc. VI), e em seu preâmbulo, desprovido de caráter normativo, é cediço, porém utilizado como meio de interpretação, expressamente faz alusão à igualdade e à justiça “(...) como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.
Os dispositivos constitucionais que veiculam os fundamentos e os objetivos da República Federativa do Brasil estatuem princípios, que, segundo a doutrina dominante, são espécies de normas, de textura aberta, em cuja aplicação há demanda de “mediações concretizadoras”, entre as quais está a atividade jurisdicional exercida perante caso determinado.
Lado outro, com a previsão de direitos e garantias fundamentais, quis o constituinte referir-se também a princípios que, a um só tempo, imantam o ordenamento jurídico com dada concepção de mundo e ideologia política, e, no plano do direito positivo, estatuem prerrogativas e instituições concretizadas como garantia de convivência digna, livre e igual de todos.
No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos fundamentais. É com esse conteúdo que a expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no art. 17.5
Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações econômicas e sociais de cada momento histórico. A Constituição, ao adotá-los na abrangência com o que o fez, traduziu um desdobramento necessário da concepção de Estado acolhido no art. 1º: Estado Democrático de Direito. O fato de o direito positivo não lhes reconhecer toda a dimensão e amplitude popular em dado ordenamento (restou dar, na Constituição, conseqüências coerentes na ordem econômica) não lhes retira aquela perspectiva, porquanto, como dissemos acima, na expressão também se contêm e informa a luta popular para a conquista definitiva da efetividade desses direitos.6
Em geral, entre essas normas, as que prevêem direitos fundamentais individuais são de aplicabilidade imediata, o que importa dizer que direitos como o de igualdade entre todos, segurança jurídica e liberdade de credo, têm aplicação imediata, aliás como quer o art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, porém são passíveis de atuação restritiva.7
Com efeito, a Constituição Federal previu a igualdade entre homens e mulheres perante a lei, não distinguiu entre formas de família, e determinou expressamente que não há qualquer distinção entre filhos, havidos ou não do casamento, por vínculo sanguineo ou civil.
É certo que os princípios funcionam diferentemente das regras sobretudo por descrever “(...) efeitos relativamente indeterminados, cujo conteúdo, em geral, é a promoção de fins ideais, valores ou metas políticas”8 ou, em sendo determinados os respectivos fins, “(...) cuida-se, diversamente, de escolher entre diferentes condutas possíveis a partir de distintas posições políticas, ideológicas e valorativas”.9
Todavia, há um conteúdo mínimo de fins ou condutas possíveis determinados logo de início porque intrínseco ao próprio princípio ou, em outras palavras, equivalente ao sentido mínimo decorrente da imposição linguística que o traduz10 e que encerra eficácia jurídica negativa (ou seja, aquilo que é, com fundamento na norma, possível exigir judicialmente) a autorizar que sejam declaradas inválidas normas em sentido lato ou atos que a ele se contraponham.11
“(...) essa modalidade de eficácia funciona como uma espécie de barreira de contenção, impedindo que sejam praticados atos, editados comandos ou aplicadas normas que se oponham aos propósitos dos princípios.”12
No que tange ao conteúdo indeterminável dos princípios há que se aplicar a eficácia interpretativa, pela qual “(...) cada disposição infraconstitucional, ou mesmo constitucional, deverá ser interpretada de modo a realizar o mais amplamente possível o princípio que rege a matéria”13, cuidando-se de selecionar, entre as interpretações viáveis, a que mais àquele se adapte, o que dá margem a um espaço de escolha ocupado pela vontade do intérprete, imiscuído de “(...) circunstâncias as mais variadas, desde opiniões e preconceitos puramente pessoais, dos quais ninguém é capaz de se livrar, até concepções diversas da finalidade da ordem jurídica com um todo ou parte dela.”14
Ora bem. A ordem jurídica brasileira como um todo, tendo a Constituição de 1988 como centro, não é um sistema axiologicamente neutro. Ao contrário, se podem existir variadas concepções sobre o direito, o constituinte originário expressou sua opção por uma delas sobretudo na forma dos princípios fundamentais que escolheu, o que, por evidente, tem repercussão na interpretação dos enunciados normativos em geral.
Sendo assim, ainda que não seja possível eliminar essa partícula volitiva e indeterminada da interpretação jurídica, e talvez nem fosse aconselhável fazê-lo, é certamente necessário algum tipo de balizamento que limite esse elemento do processo interpretativo, sob pena de frustrar-se a realização dos valores constitucionais pela substituição da concepção de Estado e de direito escolhida pela assembléia constituinte por aquela individualmente adotada pelo intérprete – a despeito de sua consagração em texto positivo e de todas as sofisticadas técnicas de interpretação. A conclusão é que os princípios constitucionais haverão de funcionar como essas balizas.15
É bem de ver que o ser humano é um fim em si mesmo, e só em razão dele e para ele deve existir o Direito. Por isso a dignidade da pessoa humana, como princípio e valor fundante da sociedade brasileira, conduz à positivação do direito justo, superando-se o modelo formal de Constituição para se adotar o paradigma material.
Uma Constituição democrática procura realizar, ao menos, dois grandes objetivos: assegurar um consenso mínimo e garantir o pluralismo político. Em primeiro lugar, cabe à Constituição tomar determinadas decisões políticas fundamentais, dentre as quais a de garantir um mínimo de direitos aos indivíduos, que são colocados pelo poder constituinte originário fora do alcance da deliberação política e das maiorias. A idéia que está no substrato dessa concepção, reforçada com a experiência da Segunda Guerra Mundial, é que a democracia é mais do que a simples aplicação da regra majoritária, sobre o que já se tratou.
Na outra ponta, o segundo objetivo de uma Constituição democrática é assegurar o pluralismo político, consagrado no inciso V, do art. 1º, da Constituição brasileira de 1988. Isto significa garantir a abertura do sistema e o exercício democrático de modo que o povo possa, a cada momento, decidir qual o caminho a seguir.
Os dois objetivos se encontram na medida em que qualquer opção que o povo faça terá necessariamente de respeitar aquele consenso mínimo assegurado pela Constituição. Essas normas básicas intangíveis têm também um papel fundamental de garantir o regular funcionamento do próprio mecanismo democrático, de modo a impedir que uma maioria venha a destruí-lo. Por outro lado, não cabe à Carta decidir de forma integral e definitiva a respeito da vida política do povo, o que caberá a este mesmo, a cada nova oportunidade eleitoral.
Ora bem. Em que medida toda essa particularidade da natureza da Constituição se relaciona com o princípio da dignidade da pessoa humana? É que, como já se viu, o princípio, em função de sua amplitude, ocupa espaços nesses dois campos: o do consenso mínimo e o da liberdade democrática. Explica-se.
Têm razão os autores quando afirmam que sob o manto do princípio da dignidade da pessoa humana podem abrigar-se as concepções mais diversas: a defesa e a condenação do aborto e da eutanásia, o liberalismo e o dirigismo econômico etc. Esse é o campo reservado à deliberação democrática. Por isso mesmo não cabe ao Judiciário simplesmente formular um conteúdo completo da dignidade que lhe pareça mais adequado. Essa é a esfera do político e faz parte das particularidades da Constituição garantir que esse campo lhe seja reservado.
Na esfera política, a eficácia jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana funciona como um limite último, uma barreira de contenção apta a obstar ações políticas que o violem ou restrinjam — modalidades de eficácia negativa e vedativa do retrocesso —, ou ainda como um imperativo interpretativo — eficácia interpretativa —, pelo qual as disposições normativas e atos do Poder Público devem ser interpretados sempre da maneira que realize de forma mais ampla e consistente a dignidade. De toda sorte, a operatividade de qualquer dessas três modalidades de eficácia jurídica pressupõe uma manifestação prévia do Poder Público, sem a qual elas permanecem inócuas, como também já se registrou.16
(...) Ao lado do campo meramente político, uma fração do princípio da dignidade da pessoa humana, seu conteúdo mais essencial, está contida naquela esfera do consenso mínimo assegurada pela Constituição e transformada em matéria jurídica. É precisamente aqui que reside a eficácia jurídica positiva ou simétrica e o caráter de regra do princípio constitucional. Ou seja: a não realização dos efeitos compreendidos nesse mínimo constitui uma violação ao princípio constitucional, no tradicional esquema do ‘tudo ou nada’, podendo-se exigir judicialmente a prestação equivalente. 17
“É possível e fundamental, todavia, investigar esse núcleo mínimo de efeitos pretendidos, de modo a maximizar a normatividade do princípio pela identificação do espaço de aplicação da eficácia positiva ou simétrica”18, de molde a determinar os efeitos concretos que, caso não se realizem, possam ser coativamente buscados pela via judicial.
O significado ético-jurídico da dignidade da pessoa humana compreende a totalidade do catálogo aberto de direitos humanos fundamentais, em sua permanente indivisibilidade e interação dialética, abarcando valores que se contradizem e preponderam a depender do momento histórico e das singularidades culturais de cada grupo social, tais como aqueles relacionados aos direitos de primeira dimensão/geração (vida, liberdade, igualdade, propriedade), segunda dimensão/geração (saúde, educação, assistência social, trabalho, moradia), terceira dimensão/geração (proteção ao meio ambiente, preservação ao patrimônio artístico, histórico e cultural) e até mesmo de quarta dimensão/geração (paz, direitos de minorias, tutela em face da biotecnologia, proteção perante a globalização econômica). 19
(...) Desse modo, a dignidade da pessoa humana é um constructo cultural fluido e multiforme, que exprime e sintetiza, em cada tempo e espaço, o mosaico dos direitos humanos fundamentais, num processo expansivo e inexaurível de realização daqueles valores da convivência humana que melhor impedem o aviltamento e a instrumentalização do ser humano.20
Cuidando-se, pois, de cláusula principiológica indeterminada, para o fim de materializar os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, cabe ao juiz a tarefa de transformá-la em conceito determinado, sob o influxo dos valores sociais de dado momento histórico, atentando para as dimensões subjetiva e objetiva desse princípio, pelas quais, respectivamente, reconhece-se o direito de resistência à intervenção estatal na liberdade individual e se determina a obrigação de o Estado agir para implementar uma condição mínima de subsistência dos cidadãos — garantindo-se aos sujeitos de direito a prerrogativa de questionar a validade de normas infranconstitucionais que ofendam qualquer dos múltiplos aspectos da existência digna —, assim como se tem que o que se confere ao titular do direito fundamental é objetivamente retirado do Estado, a permitir, inclusive, controle abstrato de constitucionalidade.
Impende ressaltar ainda que “(...) a objetivação da dignidade da pessoa humana implica que os direitos fundamentais funcionem como critério de interpretação e configuração do direito infraconstitucional, que deve ser entendido em conformidade com a Constituição." 21
Desse modo, as demais normas da Constituição e do resto da ordem jurídica hão de ser interpretadas em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana. O sistema constitucional encontra coerência substancial partindo da dignidade da pessoa humana e a ela retornando, nela fundando a sua unidade material. Entre as múltiplas possibilidades de sentido de certo texto normativo, deve-se priorizar a que torne o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana mais eficaz, ao mesmo tempo em que cada norma jurídica se encontra mais bem fundamentada e legitimada quanto mais endossá-la diante de um caso concreto.22
De tudo o que se vem de expor brevemente cabe agora indagar: realiza o ideal de Justiça e os objetivos da República Federativa do Brasil considerar que família, base da sociedade brasileira, e, portanto, digna da proteção do Estado, nos termos do art. 226, da Constituição Federal é tão-só aquela decorrente da união entre homem e mulher porque essa diversidade de sexos induz condições biológicas de procriação?
Com o devido acatamento das abalizadas opiniões em contrário, é patente que não.
O texto constitucional, que prevê a vedação à desigualdade injustificada, impede-o, máxime diante do princípio da unidade da constituição.
Entretanto, caso se insista em tão, respeitosamente, equivocada e falaciosa premissa, e se considere que procriação seja indubitavelmente a “ratio” da proteção à família e, consequentemente, da convolação de matrimônio civil, a homem e mulher privados da função reprodutora, quer por questões patológicas, quer por questão etária, não seria dado se casar, assim como destituído de fundamento estaria, como bem há muito observou WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO23, o casamento “in extremis vitae momentis”.
Essa vedação não existe e nem dela se cogita, de modo que podem, sob a égide da Constituição vigente, constituir família e celebrar, se quiserem, casamento civil, pessoas que não desfrutem de capacidade reprodutiva, e, ainda assim, sempre gozarão de proteção estatal.
Em que se fundamenta, então, essa diferenciação entre homem e mulher que não podem pelas razões já aludidas procriar pelas vias biológicas usuais e pares de homens e pares de mulheres?
Em que casais formados por homens apenas ou só por mulheres diferem, sob prisma jurídico, daqueles formados por homem e mulher?
A leitura isenta do art. 226, do precitado texto revela ter ele adotado o pluralismo nas entidades familiares, antevendo — por óbvio como deve ser o texto constitucional para que se adapte à dinâmica da vida — várias formas de família, inclusive aquelas que não sejam compostas por homem e mulher, sem que se permita distinção, para fins legais, entre elas, e, em perfeita consonância consigo, a Lei nº 11340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, identifica família, em seu art. 5º, inc. III, como qualquer relação íntima de afeto.
Por sua vez, a decisão prolatada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132 tem efeito vinculante, e, por ela, também constitui família a união estável homoafetiva.
Acrescente-se que o Código Civil vigente em qualquer de seus dispositivos exige expressamente que para a existência de casamento haja diversidade de sexos entre os nubentes.
Com efeito, ao tratar do casamento civil, apenas em alguns dispositivos, esse diploma menciona “homem” e “mulher” como componentes do casal nubente, sem, contudo, estabelecer, como requisito de existência do negócio em estudo, a diversidade de sexo, levando-se mesmo à conclusão desapaixonada que essa exigência tem conotação extrajurídica, a saber, religiosa. 24
Sim, na lição de WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO25 , o instituto em testilha passou a interessar como tal na Roma antiga e depois foi absolutamente reivindicado pela Igreja Católica Apostólica Romana, que o regulamentou no Concílio de Trento.
Foi com essa roupagem, religiosa, que o instituto ingressou no ordenamento jurídico brasileiro, num país formado então pela quase totalidade de católicos, após colonização por Portugal, que também professava a mesma religião.
Até o advento do Código Civil de 1916, vigia no Brasil, mesmo independente, a legislação de Portugal, país eminentemente católico.
Depois disso, foi ele substituído, em 2002, pelo atual Código Civil, cuja elaboração teve início em 1969, por uma comissão liderada por Miguel Reale, em 1969, resultando em anteprojeto de 1973, e, na sequencia, no Projeto de Lei n.º 634, de 1975, que só teve efetiva tramitação no Congresso Nacional, décadas após 26.
No que tange ao casamento, ou, mais propriamente, à sua celebração, portanto, aos requisitos de existência e validade do ato em estudo, as disposições de ambos os códigos são praticamente idênticas, de modo que os dois códigos não estabelecem expressamente que somente um homem e uma mulher podem se casar em âmbito civil e refletem fatos e valores anteriores ao advento da atual Constituição.
Forçoso lembrar que as normas restritivas de direitos, a cuja classificação redundaria norma que determinasse que é proscrito o casamento civil entre pessoas de mesmo sexo ou norma que estabelecesse que só é admissível casamento de par de sexos opostos, devem ser expressas, porquanto diante dos princípios e direitos fundamentais da igualdade, da legalidade e da segurança jurídica, não se admitem vedações implícitas de direitos.
É verdade, em sede privada, decorre do princípio da Legalidade (art. 5º, inc. II) a regra pela qual as normas restritivas de direito devem ser expressas, na medida em que tudo que não for proibido ou vedado será permitido.
Portanto, há que se reconhecer que, não havendo proibição expressa na legislação civil ao casamento civil de pares de mesmo sexo, ou inexistindo exigência expressa de que para se casar os nubentes sejam de sexos opostos, em tese, a linha esposada por MARIA BERENICE DIAS27, no sentido de que não há empecilho jurídico ou legal, senão mero preconceito de ordem sexual, é correta.
Observe-se, de outra banda, que, no transcorrer do precitado lapso temporal, o Estado brasileiro tornou-se laico e, assim, vigora ilimitada liberdade de crença e de credo, de maneira que exigências e restrições que não decorram propriamente do sistema jurídico em si mesmo considerado, mas que tenham, como se viu, viés tão-somente religioso não se podem sustentar, por não encontrar albergue no texto constitucional, amplamente informado pela dignidade da pessoa humana, como forma de realização do Direito Justo e que visa declaradamente à construção de uma sociedade justa e solidária, livre de preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Também no transcorrer desse tempo a sociedade, seus valores, seus costumes e seus anseios se transformaram, certo que num Estado Social como o brasileiro, isso se reflete de forma contundente no Direito de Família, que acabou por se constitucionalizar, buscando sempre e sempre fundamento de validade constitucional.
Agora, o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo. Cada vez mais a idéia de família afasta-se da estrutura do casamento. A família de hoje já não se condiciona aos paradigmas originários: casamento, sexo e procriação. O movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos e os resultados da evolução da engenharia genética fizeram com que esse tríplice pressuposto deixasse de servir para balizar o conceito de família. Caiu o mito da virgindade e agora sexo — até pelas mulheres — pratica-se fora e antes do casamento. A concepção não mais decorre exclusivamente do contato sexual e o casamento deixou de ser o único reduto da conjugalidade. As relações extramatrimoniais já dispõem de reconhecimento constitucional e não se pode deixar de albergar, no âmbito do direito das famílias, as relações homoafetivas (...). 28
Dizemos que uma norma existe, ou que goza de “validade social” (soziale Geltung), se vem reconhecida como “válida” (gültig) ou legitima pelos seus destinatários. Inversamente, a afirmação de que uma norma existe factualmente significa que a pretensão de validade que esta comporta vem reconhecida pelos interessados e que esse reconhecimento “intersubjectivo” (Verständingung) funda a “validade social” desta. 29
Nesses lindes, observando-se o que de forma breve e singela já se expôs nessa decisão acerca dos princípios constitucionais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, ainda para aqueles que adotam a linha de que as disposições já aludidas do Código Civil para a celebração de casamento civil implicam exigência de diversidade de sexos dos nubentes, o texto constitucional não o ampara e, assim, esses dispositivos, no que toca àquele requisito, são absolutamente inconstitucionais e como tais devem ter sua aplicação afastada, conquanto se cuide de mera decisão prolatada em sede de processo de habilitação de casamento, de natureza eminentemente administrativa.
Tem-se no processo de habilitação para o casamento, regrado nos arts. 1525 a 1532, do Código Civil, uma fase preliminar do casamento civil, que se destina à verificação dos requisitos legais para o ato nupcial, a se realizar perante o Oficial de Registro Civil.
“Habilitar para o matrimônio consiste em definir a aptidão jurídica dos nubentes, que atuam no processo juntamente com o oficial, o representante do Ministério Público e o juiz. O casamento subsiste como ato formal nos atos preparatórios, nos de celebração e nos imediatamente posteriores a esta”.30
Na habilitação, a atividade do Juiz Corregedor Permanente é meramente administrativa. Tanto assim que o parecer elaborado pelo juiz assessor Marcelo Fortes Barbosa Filho, nos autos do processo nº 28/2003 - CGJ/DEGE, aprovado, em 23 de janeiro de 2003, pelo então Corregedor-Geral de Justiça, o Desembargador Luiz Tâmbara, considerou salutar “limitar o fluxo dos procedimentos, de maneira que apenas as habilitações dotadas de algumas peculiaridades potencializadoras do surgimento de invalidades ou de situações de eficácia especial do matrimônio devam ser remetidas ao juiz”, nos termos do art. 1526, do Código Civil.
A Lei nº 12133, de 17 de dezembro de 2009 confirmou esse posicionamento, conferindo nova redação ao dispositivo em lume, para determinar que somente nos casos em que impugnada, a habilitação deve ser submetida ao juiz, que, ainda assim, desenvolve atividade administrativa nessa seara.
De outro lado, é de se notar que, na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA31 , a Constituição Federal de 1988 é rígida, e como tal, é lei fundamental e suprema do Brasil, mostrando-se mesmo irrelevante que não haja dispositivo expresso a respeito, já que tal se infere das normas distribuídas ao longo de seu texto, como os arts. 23, inc. I, 25, 29, 32, 60, 78, 85, 121, §§ 3º e 4º, 125, e, especialmente, dos dispositivos que tratam do controle de constitucionalidade, a saber, arts. 102 e 103.32
Na defesa dessa supremacia, estabelece-se o controle de constitucionalidade, que, nessas terras, “é o jurisdicional, combinando os critérios difuso e concentrado, este de competência do Supremo Tribunal Federal”33 , certo que aquele outro, adotado desde a primeira Constituição Republicana Brasileira, pode ser suscitado por qualquer interessado, como questão prejudicial, em processo de qualquer natureza, qualquer que seja o juízo perante o qual ele tramite.
O controle difuso caracteriza-se, principalmente, pelo fato de ser exercitável somente perante um caso concreto a ser decidido pelo Poder Judiciário. Assim, posto um litígio em juízo, o Poder Judiciário deverá solucioná-lo e para tanto, incidentalmente, deverá analisar a constitucionalidade ou não da lei ou do ato normativo. A declaração de inconstitucionalidade é necessária para o deslinde do caso concreto, não sendo pois objeto principal da ação.34
Em resumo, o controle difuso de constitucionalidade só é possível em sede de ação judicial, do que não cuida a hipótese vertente, como anotado alhures, o que poderia induzir a inviabilidade de análise da questão posta na presente via.
Todavia, é apenas aparente essa inviabilidade, máxime porque, ainda que administrativa a atividade nesse momento desenvolvida, é de se negar a atos e normas, quaisquer que sejam eles, os efeitos que normalmente produziriam, se eles se contrapõem à Constituição, como corolário da hierarquia normativa superior de suas normas, isto é, de sua supremacia.
Raciocínio diferente conduziria à superioridade da Lei ordinária em relação à Constituição Federal, o que é vedado, por óbvio, consoante já se destacou nesse texto.
De conseguinte, mais que o princípio da legalidade, previsto no “caput”, do art. 37, da Constituição Federal, é de nortear toda e qualquer atividade administrativa, o princípio da constitucionalidade, cumprindo frisar que se é de perseguir incessantemente, como já se mencionou algures, outorgar o máximo de eficácia e efetividade possível aos princípios constitucionais que veiculam direitos fundamentais (entre eles, igualdade, legalidade, segurança jurídica e liberdade de crença), bem como é de se recordar que o Direito só existe em função do Humano e não o contrário e, conseqüentemente, impõe-se entender e dimensionar a dignidade da pessoa humana como princípio e valor fundante da sociedade, tanto em seu conteúdo mínimo de eficácia jurídica negativa, a permitir, e exigir mesmo, que se repilam atos que ensejam seu descumprimento, como no núcleo de eficácia simétrica ou positiva, para que se concretizem também a igualdade, a liberdade de crença, a legalidade e a segurança.
A “dignidade da pessoa humana”, a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, a realização e aprofundamento da “democracia participativa”, impõem um direito mais além da lei. Portanto, o programa não deverá ser alternativo, mas cumulativo: uma existência digna do homem em liberdade e uma liberdade através de uma existência condigna do homem.”35
Essas considerações justificam não só a fiscalização de constitucionalidade da Lei no exercício de atividade administrativa como autorizam, implicitamente, seu descumprimento, por inconstitucionalidade.36
(...) o princípio da constitucionalidade — ou, melhor dizendo, a dimensão constitucional do princípio da legalidade — tem uma irredutível dimensão competencial. Ao imporem limites à conduta dos órgãos públicos, as normas constitucionais assumem, conforme é geralmente reconhecido pela doutrina, a natureza de verdadeiras normas negativas de competência, pelo que qualquer norma constitucional se deve considerar prima facie atributiva da competência para a adopção das condutas necessárias para evitar a sua violação. Por outras palavras, a competência de desaplicação resulta de uma eficácia delimitadora das competências positivamente atribuídas à Administração, exercida, em homenagem ao princípio da constitucionalidade, pelas próprias normas constitucionais. Que tal resulte da operatividade de um princípio constitucional e não de uma norma com as características estruturais e textuais prototípicas das normas de competência é algo que não se deve estranhar: na doutrina portuguesa, já SÉRVULO CORREIA37 demonstrou convincentemente que o princípio da legalidade da competência é compatível com a existência de competências administrativas fundadas em normas com a estrutura de princípio.
O princípio da constitucionalidade da Administração impõe, portanto, prima facie, a existência de uma competência administrativa de desaplicação de normas legais inconstitucionais. 38
Defende-se, de igual, na Doutrina39 e Jurisprudência40 brasileiras, a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo descumprir a lei inconstitucional.
Destarte, no exercício da presente atividade administrativa em sede de processo de habilitação para os fins retrocitados, impõe-se descumprir o regramento precitado do Código Civil vigente, que para alguns está a requerer a diversidade de sexos, por inconstitucional, para o fim de permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, preenchidos os demais requisitos legais para o ato em tela.
Observo, finalmente, que, diante do quanto expendido, não encontra respaldo jurídico, com a devida vênia, a tese pela qual somente após prévia união estável é de ser admitida a celebração de casamento civil, por meio de conversão, por pessoas de sexo igual, uma vez que tal exigência não encontra amparo nem na Constituição Federal, nem na legislação infraconstitucional, e nem se fundamenta na relativamente recente decisão emanada do Supremo Tribunal Federal (Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 4277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 132), pela qual aquela Corte houve por bem reconhecer como entidade familiar a união estável entre pessoas de mesmo sexo.
Ante o exposto, com fundamento nos arts. 1º, inc. III, 3º, incs. I e IV, e 5º, incs. II e VI, todos da Constituição Federal, defiro habilitação para que *********** e *********, observados os demais requisitos e procedimentos legais, celebrem casamento civil perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da sede da comarca de Jardinópolis/SP, nos autos do Livro 6, fls. 5 – V, protocolo de entrada 230/11.
P.R.I. Ciência ao Ministério Público.
Jardinópolis, 09 de agosto de 2011.
DÉBORA CRISTINA FERNANDES ANANIAS
Juíza de Direito e Corregedora Permanente
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1 Dias, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 141.
2 Ibid., p. 144.
3 Para constituinte originário, família é aquela que gera descendentes para sociedade. Informativo mensal, São Paulo, ARPEN-SP, n. 111, p. 35-39, mai. 2011.
4 “É possível a realização do casamento homoafetivo pela conversão da união estável”. Informativo mensal, São Paulo, ARPEN-SP, n. 111, p. 32-33, mai. 2011
5 Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p.178.
6 Ibid., p. 178-179.
7 Silva, José Afonso da. op. cit., p. 180.
8 Barcellos, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 63.
9 Ibid., p. 63.
10 Ibid., p. 67.
11 Barcellos, Ana Paula de. op. cit., p. 82.
12 Ibid., p. 107.
13 Ibid., p. 107.
14 Barroso, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6 ed. 2004, p. 252 e ss. apud Barcellos, Ana Paula de, op. cit., p. 97.
15 Barroso, Luís Roberto, op. cit., p. 98-99.
16 Barcellos, Ana Paula de, op. cit., p. 279-282.
17 Ibid., p. 282.
18 Barcellos, Ana Paula de, op. cit., p. 283.
19 Soares, Ricardo Maurício Freire. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 143.
20 Ibid., p. 144.
21 Soares, Ricardo Maurício Freire, op. cit., p. 144.
22 Ibid., p. 147.
23 Monteiro, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito de Família. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 11
24 Observa Maria Helena Diniz (Curso de direito civil. Direito de Família. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 50): “O casamento tem como pilar o pressuposto fático da diversidade de sexo dos nubentes, embora não haja nenhuma referência legislativa a respeito; ante a sua evidência essa condição impõe-se por si mesma. Se duas pessoas do mesmo sexo, como aconteceu com Nero e Sporus, convolarem núpcias, ter-se-á casamento inexistente, uma farsa. Absurdo seria admitir-se que o matrimônio de duas mulheres ou de dois homens tivesse qualquer efeito jurídico, devendo ser invalidado por sentença judicial. Se, porventura, o magistrado deparar com caso dessa espécie, deverá tão-somente pronunciar sua inexistência, negando a tal união o caráter matrimonial.”
25 Monteiro, Washington de Barros., op. cit., p. 12-14.
26 Observe-se a tônica da época pelo fato de que somente em 1977, com a Lei nº 6515, admitiu-se o divórcio, como meio de dissolução do casamento.
27 Dias, Maria Berenice, op. cit., p. 245-252.
28 Dias, Maria Berenice, op. cit., p. 40.
29 Habermas, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handels. I, Francoforte sobre o Meno, 1981, p.132-133 apud Queiroz, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial. Lisboa: Coimbra Editora, 2000. p. 96-97.
30 Ceneviva, Walter. Lei dos registros públicos comentada. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 170.
31 Silva, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 21 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p. 46.
32 Ferreira, Olavo Augusto Vianna Alves. Controle de constitucionalidade e seus efeitos. 2 ed. São Paulo: Método, 2005. p. 23.
33 Silva, José Afonso da, op. cit. p. 51.
34 Moraes, Alexandre de. Direito constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 589.
35 Queiroz, Cristina, op. cit., p. 65.
36 Matos, André Salgado de. A fiscalização administrativa da constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2004. p. 163-179.
37 Correia, J. M. Sérvulo. Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos. Coimbra, 1987. p. 732-733.
38 Matos, André Salgado de, op. cit., p. 322-321.
39 Ramos, Elival da Silva. A inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 238.
40 Supremo Tribunal Federal: RTJ 96/496, 1981, p. 508, Rep. N. 980-SP, Relator Ministro Moreira Alves; Adin 221-DF, Relator Ministro Moreira Alves, RTJ 151/331, 1995.
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