quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

JOÃOTÓNIO, NO ENQUANTO (CONTO - Mia Couto)

Essa crônica é formidável. A escrita, perfeita. A estória de um homem que se casa com uma mulher fria ("lenha molhada: o fogo lhe resvalia", na voz da personagem) e a manda a um prostíbulo aos cuidados de uma "bacanaleira" para aprender a "inata arte de deitar". Todavia, a mulher volta masculinizada. O resto, só lendo. Muito bom. Texto de Mia Couto
JOÃOTÓNIO, NO ENQUANTO
Mia Couto
Por enquanto, sou Joãotónio. Lhe digo e desdigo, mano: com mulheres me ponho em modos de ser tropa. Pois todo o encontro com elas me aparenta uma batalha. Assim, quando olho uma eu já adianto adivinhação: como será sua voz? Não me intriga a voz visível mas outra, silenciosa, subcorpórea, capaz de tantas linguagens como a água. Outrodizendo: eu quero adivinhar é os gemidos delas, esse resvalar de asas na frente do abismo, o arrepio da alma perdendo morada.
Você sabe, mano: a voz da pessoa esconde o doce sabor do sussurro. A voz encobre o suspiro. E agora já ouço a sua pergunta: porquê esta mania de adivinhar suspiros? É a mesma vontade do general, mano. É o gosto de antecipar a rendição do adversário. É o desejo de antescutar como elas podem requebrar, vencidas e abandonadas.
Às vezes, penso: no fundo, eu tenho medo de mulher. E você não tem? Tem, bem que eu sei. As idéias delas nascem num lugar que está fora do pensamento. Daí vem nosso medo: nós não deciframos o entendimento das mulheres. Suas superioridades nos medonham, mano. Por isso, as concebemos em tratos de batalha, versadas adversárias. Mas volto aos começos, veja você, já eu rangia como uma curva, derraspado em filosofices. Agora recomece também sua audição.
Ainda e por enquanto: sou Joãotónio. Lhe conto, agora, a ficção de minha tristeza. Não é para espelhar por aí. Confio-lhe, mano. Porque não é um qualquer que publica assim as suas dores. O que vou escrever é motivo das vergonhas.
Começo com Maria Zeitona, causadora de todos motivos. Escrevo o nome dessa mulher e ainda me sucede ouvir sua voz, suavezinha que nem asa. Já disse: voz de mulher vale tanto como a carne dela. Pelo menos, a mim me abre os apetites mais que as visões e as tentações.
Como não ia dizendo: Maria Zeitona me apareceu intacta e intacteável. Dela se soltava a suspeita da brasa sob a cinza. Seu corpo falava pelos olhos. E que olhos cristalindos! Casámos, instantâneos. Eu queria sofrer a promessa daquele fogo. Esposava para consumar aquelas ardências que tanto enxamearam meus sonhos. Contudo, meu mano: Maria Zeitona era fria, calafrígida! Eu fazia amores era como se fosse com uma defunta. O que eu com ela praticava eram relações assexuais. E assim ela se foi mantendo mais virgem que Maria. Tentei, retentei, usei as técnicas de minha total experiência. Contudo, mano: não valeu a pena. Zeitona era lenha molhada: o fogo lhe desvalia.
Girei as tácticas, lhe ofereci valiosas surpresas. Experimentei os namoros muito prévios. Até lhe beijei desde a terminal dos pés. Não arrebitou resultado. Beijo não se dá nem se recebe. A vida é que beija, recíproca. Repito, mano: a vida é que nos beija, dois seres se resumindo num único infinito. Conversa afilhada? Está certo, mano, regresso ao cujo assunto de Maria Zeitona.
No final das campanhas, lhe dei um penúltimato: ou ela se açucarava ou eu tomaria as medidas inconvenientes. E foi o que não se sucedeu. Então, mano, me decidi: entregaria Zeitona a uma prostituta. Sim, Zeitoninha faria um estágio com uma dessas profissionais de roça e destroca. Assim ela aprenderia a enrodilhar lençóis. Enfim, ela cometeria o pecado imortal.
Não demorei a escolher a adequada mestra: seria Maria Mercante, a mais famosa bacanaleira, mulher bastante inata nas artes de deitar. Escura, retintadinha, dona de deliciosos recheios. Neste mundo há dois seres que se apoiam no rabo para subir na vida: o javali e Maria Mercante. Falei bem com a rabuda:
– Por favor, lhe ensine as viragens de núpcias!
– Se descanse, senhor. Corpo de mulher não basta ter qualidades: é preciso ter qualificações.
E a qualificada prostituta prosseguiu. Falou conversas deslocadas, quem sabe se para aumentar o preço das lições. Zeitona deixaria as virgindades mais arrependida que aquela, única que concebeu sem pecado. Pois, ela conhecia era a versão do exacto: Virgem Maria tinha, afinal, recusado a visita do Espírito Santo. Respondera nestes termos: ter filho sem fazer amor? Qual o gozo? Deitar fora o prato e ficar com o arroto? É essa a lição que vou dar a Zeitona: nada de platonismos: sexo à primeira vista.
Lhe interrompi, desviando a conversa dos anjos para minhas materiais aflições. Consoante pagamentos antecipados, Maria Mercante aceitou o serviço. Eu que ficasse repousado: minha esposa sairia do curso mais acesa que o pino do meio-dia. Que eu me haveria tanto de despentear com ela que até o colchão reclamaria urgentes remendos. E Zeitona lá foi para um lugar desses, de baixa seriedade. Vamos lá: um pronto-a-despir.
Passaram semanas, o curso terminado, minha esposa regressou a casa. Vinha, de facto, mudada. Seus modos eram demasiado estranhos mas não da maneira que eu esperava. Caramba, mano, até ponho vergonha nesta confissão: Zeitoninha vinha com jeitos de homem! Ela que era tão metida nos ombros dela agora parecia um manda-bátegas. Isto é, isto foi: minha Zeitona se inchara de masculina. E não era só no momento dos namoros. Era sempre e em tudo. Na voz, inclusive. Tudo nela se emendara, mano, a pontos de eu coçar as minhas machas partes para me confirmar. Digo mesmo: ela é que me empurrava a deitar, acredite, ela é que me desapertava, me ia roubando os ares. Eu ficava para ali sem nenhuma iniciativa, executado e mandado como se fosse rapariga iniciada. E a coisa continua até o presente actual. O problema, mano, é o seguinte: eu até gosto! Me custa admitir, tanto que hesito em escrever. Mas a verdade é que me agrada esta nova condição, sendo-me dada a passiva idade, o lugar de baixo, a vergonha e o receio.
E é isto, mano. Me explique, caso lhe chegue o entendimento. Eu não sei qual pensamento hei-de escolher. Primeiro, ainda me justifiquei: afinal, a verdade tem versões que até são verdadeiras. Como, por um exemplo: nos amores sexuais não há macho nem fêmea. Os dois amantes se fundem num único e bipartido ser. Não haveria, portanto, razões para meu rebaixamento. Está-me a seguir, meu irmão?
Mas agora, no momento que lhe escrevo, nem mais me apetece explicação. Quero desraciocinar. Em cada dia não espero senão a noite, as brandas tempestades em que eu sou Joãotónio e Joanantónia, masculina e feminino, nos braços viris de minha esposa. Por enquanto, mano, ainda sou Joãotónio. Me vou despedindo, vagarinhoso, do meu verdadeiro nome.
(In: COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.)

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