sábado, 24 de março de 2012

Liminar - Portador de Necessidades Especiais - Cobranças - Escola Particular

Vistos etc.

Cuida-se de mandado de segurança impetrado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS contra ato apodado de coator praticado pelas Ilmªs. Srªs SUPERINTENDENTE DA FUNDAÇÃO ITABIRANA DIFUSORA DE ENSINO, PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO ITABIRANA DIFUSORA DE ENSINO e também do CONSELHO DIRETOR DA FUNDAÇÃO ITABIRANA DIFUSORA DE ENSINO, por meio da pena de sua denodada Promotora de Justiça Drª. NIDIANE MORAES SILVANO ANDRADE, no bojo do qual pede a concessão de liminar que assegure à criança XXXXXXX, portadora de necessidades especiais ('Transtorno Invasivo de Desenvolvimento') atendimento educacional por meio de professor monitor, ou outro profissional capacitado, em todos os dias da semana na sala de aula regular, bem assim atendimento com professor habilitado em atendimento educacional especializado no contra-turno independentemente de quaisquer acréscimos em sua mensalidade, sobretudo aqueles decorrentes do 'Contrato Aditivo de Ajuste Econômico-Pedagógico'.

Como causa de pedir, aduziu que o menor XXXXXXXXXXXXXX, hoje contando sete anos idade, é membro do corpo discente daquele educandário desde  o ano de 2008 e que, a partir do final do ano de 2009, passou a entidade a lhe cobrar, para além da mensalidade que é devida por todo o alunato, uma sobretaxa a título de prestação dos serviços educacionais especiais de que necessita.

A partir do ano letivo em curso, a instituição passou a exigir o custeio integral para a contratação de monitora que o atenda diretamente, auxiliando-o na alimentação, higiene e outras atividades rotineiras.
Narrou o Parquet que, visando a obviar a solução de continuidade da prestação dos serviços educacionais, submeteram-se os genitores do infante à assinatura de 'Contrato Aditivo de Ajuste Econômico Pedagógico', mercê do qual se comprometeram a pagar a quantia de R$ 7.635,87 (sete mil, seiscentos e trinta e cinco reais e oitenta e sete centavos), dividida em doze parcelas, com o quê  a manutenção do aluno na escola restará impossibilitada por força das condições financeiras de seus pais e parentes.

É o RELATÓRIO do quanto necessário.  Passo a FUNDAMENTAR e DECIDIR.

Cumpre-me, neste juízo de delibação, verificar se se encontram presentes os requisitos que autorizam a concessão da medida liminar vindicada, quais sejam a relevância do fundamento e a aptidão do ato impugnado para resultar na ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida.  É o que se extrai da dicção do artigo 7º, inciso III da Lei nº 12.016, de 2009.

Quanto à possibilidade de ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida, questões atinentes à precariedade financeira do núcleo familiar podem soçobrar a frequência escolar de  XXXXXXXXXXXXX.  Mesmo porque, fosse a família detentora de recursos financeiros que lhes propiciassem o pagamento da importância que vem sendo exigida pelo educandário e certamente não procuraria o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS para a tutela dos interesses do menor.

Com efeito, é da experiência que, em hipóteses desse jaez, acedem as partes à Justiça Comum ou aos Juizados Especiais Cíveis visando à repetição da quantia reputada indevida, com cumulação, no mais das vezes, de pedido de compensação por danos extrapatrimoniais.

O documento de folhas 21-25 inculca a veracidade dos fatos narrados pelo impetrante, encontrando-se o aludido 'Contrato Aditivo de Ajuste Econômico Pedagógico' enganchado às folhas 87-89.

Resta-me, pois, analisar se, à luz do arcabouço legislativo que circunda a matéria, existe relevância do fundamento sob o viés jurídico.

Dentre os vetores axiológicos que inspiraram o Poder Constituinte originário, avulta a especial proteção de que desfrutam as pessoas portadoras de deficiências, instando a adoção de políticas inclusivas que as integrem de forma plena na vida comunitária.

Inter plures, mencionem-se, de logo, os mandamentos insculpidos nos artigos 227, §1º, inciso II e 208, inciso III da Lex Legum, este último cuja redação se encontra vazada nos seguintes termos:
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
(omissis)
III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

A igualdade de condições para o acesso e permanência na escola por parte dos portadores de necessidades especiais encontra-se assegurada no artigo 206, inciso I combinado com o artigo 227, caput, ambos da Constituição da República, este último ao proscrever qualquer forma de discriminação  à criança ou ao adolescente, incumbindo também à sociedade civil o dever de velar por tais desideratos.

Dando concretude aos mandamentos constitucionais, sobreveio o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 1990), pródigo em normas protetivas às crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais, das quais sobressaem as dos artigos 54, inciso III, 66, 87, inciso VII, 112, §3º, 208, inciso II.

Antes mesmo da Lei nº 9.394, de 1996, cognominada de 'Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional', prever a 'Educação Especial' como modalidade de educação escolar voltada para os portadores de necessidades especiais, a Lei nº 7.853, de 1989 já assegurava o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas 'portadoras de deficiências' e sua efetiva integração social, determinando, na exegese de suas normas, os critérios de 'igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros.' (artigo 1º, §1º).

A Lei nº 7.853, de 1989 contemplou, a seu turno, a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos particulares de pessoas portadoras de deficiências capazes de se integrarem no sistema regular de ensino, concretizando e dando meças à necessidade de uma educação inclusiva e não discriminatória.

O Decreto nº 3.298, de 1999, de sua parte, ao introduzir a 'Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência', determinou, em seu artigo 29, que as escolas ofereçam serviços de apoio especializado para atender às peculiaridades da pessoa portadora de deficiência.  Confira-se, sem os grifos por mim adicionados:

Art. 29.  As escolas e instituições de educação profissional oferecerão, se necessário, serviços de apoio especializado para atender às peculiaridades da pessoa portadora de deficiência, tais como:
I - adaptação dos recursos instrucionais: material pedagógico, equipamento e currículo;
II - capacitação dos recursos humanos: professores, instrutores e profissionais especializados; e
III - adequação dos recursos físicos: eliminação de barreiras arquitetônicas, ambientais e de comunicação.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional não se distanciou de tais objetivos, consoante se haure, sobretudo, nos artigos 58, §1º e 59, inciso III.

O artigo 209, inciso I da Constituição da República, estabelece que o ensino é livre à iniciativa privada, atendida a condição de cumprimento das normas gerais da educação nacional.

Com efeito, configuraria desabrida interpretação das normas constitucionais não considerar a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola por parte dos portadores de necessidades especiais, tal como determinada pelo artigo 206, inciso I combinado com o artigo 227, caput, ambos da Constituição da República, norma geral da educação nacional.

Mais que isso, está-se a cuidar de normas gerais que veiculam conteúdos de direitos fundamentais e de direitos humanos, de subida relevância quando se verifica a discriminação experimentada por pessoas portadoras de necessidades que demandem cuidado especial pela sociedade.

Parece-me assim que a cobrança por profissionais especializados que vem sendo exigida de XXXXXXXXXXXXXX contrapõe-se aos valores e princípios dedicados aos portadores de necessidades especiais e às normas constitucionais que os cristalizam, às quais encontram-se as autoridades impetradas sotopostas ao cumprimento, na forma do artigo 209, inciso I da Constituição da República.

Demais disso, o aluno insere-se na categoria de consumidor.  Um consumidor especial, é certo, mas merecedor de toda tessitura protetiva da Lei nº 8.078, de 1990.
Sendo a matrícula do aluno portador de necessidades especiais obrigatória para os impetrados pelo menos desde o advento da  Lei nº 7.853, de 1989, condicionar a permanência do aluno à prestação de serviço adjeto constitui prática abusiva que afronta ao disposto no artigo 39, inciso I da Lei nº 8.078, de 1990, mas, sobretudo, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola.

Para além da obrigação legal, é bem de ver que, sendo a escola um microcosmo da sociedade plural e aberta na qual nos encontramos inseridos, que visa a preparar os educandos para a harmônica vida em comunidade, respeitadas as diferenças decorrentes de credo, raça, etnia e necessidades especiais, a presença de um portador de necessidades especiais no corpo discente é, para além de um encargo, um privilégio para o educandário e seus 'clientes' que, no limite, devem participar do custeio das despesas decorrentes de tal privilégio mediante rateio nas mensalidades escolares.

Por postremeiro, permito-me transcrever excerto do percuciente trabalho de JUCÉLIA LINHARES GRANEMANN (Comunicação resultante da dissertação de mestrado defendida em 2005, junto a Pós-graduação-Mestrado em Educação na Universidade Católica Dom Bosco, MS), com supressões decorrentes da síntese:

A proposta inclusiva é completamente inovadora e nada tem a ver com o passado; ela inaugura uma nova etapa na educação mundial: a educação para todos, diante da construção de uma sociedade inclusiva. Trata-se, desta forma de um novo paradigma em ascensão e que deverá evoluir na direção de sua concretização plena, haja vista ser uma concepção que se desdobra em práticas produtivas, agregadoras, éticas, solidárias e respeitosas e que colaboram com o desenvolvimento da escola.
Neste sentido, Goffredo (1999), reitera que é a escola a principal instituição responsável por tal processo e deve considerar como sendo um desafio seu, o sucesso de todos os seus alunos, sem exceção. Não há dúvida de que a qualidade do ensino, a renovação pedagógica, a reformulação de políticas, metas e programas são procedimentos eficientes e estimuladores ao processo. Essas novas mudanças têm evocado, segundo Baptista (2006, p.7), debates em diferentes campos disciplinares, exigindo que sejam revistas concepções sobre os sujeitos e sobre as instituições envolvidas.
[…]
A inclusão provoca, portanto, uma crise de identidade institucional que, por sua vez, abala a identidade fixada em modelos ideais permanentes, essenciais. O direito à diferença nas escolas desconstrói os sistemas de significação escolar excludente, normativo, elitista, com suas medidas e mecanismos de produção da identidade e da diferença e passa a “impor” uma estrutura calcada no enfrentamento de circunstâncias e adversidades como desafios a serem superados.
[…]
Atender às necessidades especiais desses alunos supõe, portanto, mudar o olhar da escola, preconizando não a adaptação do aluno a ela, mas a adaptação do contexto escolar a ele. A avaliação dos seus efeitos não deve ser medida, portanto, pelo aproveitamento de alguns alunos, os que apresentam dificuldades de aprender ou aqueles com necessidades educacionais especiais nas classes do ensino regular.
[...]

Não desconheço a natureza privada da instituição educacional.  Todavia, o atendimento das diretrizes constitucionais (bloco de constitucionalidade) e infraconstitucionais, como já anotado, não constituirá ônus desproporcional.  Muito ao invés, carreará para a instituição benefícios que não se traduzirão em pecúnia, devendo os ônus financeiros daí decorrentes serem rateados por todos os beneficiários da política inclusiva, mormente os educandos que ali frequentam.

Nessa ordem de considerações, DEFIRO A LIMINAR e determino às autoridades impetradas que se abstenham de cobrar de XXXXXXXXXXXXXXXXXXX qualquer importância decorrente do indigitado 'Contrato Aditivo de Ajuste Econômico-Pedagógico', bem como que lhe assegurem atendimento educacional por meio de professor monitor, ou outro profissional capacitado, em todos os dias da semana na sala de aula regular, bem assim atendimento com professor habilitado em atendimento educacional especializado no contra-turno independentemente de quaisquer acréscimos em sua mensalidade.
Intimem-se as autoridades coatora do conteúdo desta decisão.

Notifiquem-se as autoridades coatora do conteúdo da petição inicial, enviando-lhes a segunda via apresentada com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 10 (dez) dias, prestem as informações.

Findo o decêndio, abra-se vista ao MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, a fim de que apresente parecer, no prazo legal de 10 (dez) dias.

Com ou sem parecer, venham os autos conclusos para sentença.
Itabira, 12 de julho de 2010.



PEDRO CAMARA RAPOSO LOPES
Juiz de Direito

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