terça-feira, 30 de agosto de 2011

DECISÃO – PRISÃO EM FLAGRANTE – POSTURA DO JUIZ – LEI 12.403, DE 2011 – 2ª VARA CRIMINAL DE CARUARU - PE


2a Vara Criminal da Comarca de Caruaru-PE

Referente ao procedimento n. 0008189-51.2011.8.17.0480

D E C I S Ã O

Tendo em conta a vigência da lei n. 12.403/11, faz-se necessária breve consideração a respeito de sua constitucionalidade.

O art. 310, e seus incisos, do CPP, com a nova redação dada pela citada lei, pode dar ensejo à precipitada conclusão de que o juiz, ao receber a cópia do Auto de Prisão em Flagrante delito, somente poderia relaxar a prisão, se ilegalmente realizada, conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, ou, ainda, decretar, de ofício, a prisão preventiva no indiciado.

No entanto, não é assim que nos parece.

Como é notório, no meio jurídico, a interpretação literal de leis infraconstitucionais quase nunca é a que mais serve aos propósitos constitucionais expressos na CF de 1988. Há de se fazer, sempre que necessária, uma “filtragem constitucional”. Daí que, de logo, podemos já concluir pela inconstitucionalidade da determinação contida no art. 310, II, do CPP, quando comanda ao juiz “converter” a prisão em flagrante em prisão preventiva, sem que haja requerimento do Ministério Público ou representação da Autoridade Policial.

Se assim procedesse, estaria o juiz ferindo de morte o Sistema Acusatório (exposto no art. 129, I, da CF, além de noutros artigos), a inércia jurisdicional e sua imparcialidade.  De se notar, também, que tal proceder ainda estaria de encontro ao próprio novel texto dos art. 282, §2º, e 311, ambos do CPP, que revelam não poder o juiz decretar cautelares, e especialmente a prisão preventiva, de ofício, em sede inquisitorial.

Já dissemos alhures, com inteira pertinência no caso1:

(1 CASARA, Rubens R. R. e LIMA, Joel Correa.. Temas para uma perspectiva crítica do direito: Homenagem ao professor Geraldo Prado. 2.010.Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 813- 830.)

“O juiz, na fase inquisitorial, somente deve atuar mediante provocação, a fim de resguardar sua necessária imparcialidade. O princípio da inércia do poder jurisdicional é umbilicalmente ligado à manutenção da imparcialidade do juiz. Ora, para que o juiz venha a decretar uma prisão preventiva deve cogitar qual crime teria sido cometido, a fim de verificar a admissibilidade da prisão preventiva (art. 313 do CPP). Formula o juiz, portanto, em momento absolutamente impróprio (porque próprio do Ministério Público), uma verdadeira opinio delicti.  Também deve o juiz verificar a existência de prova da materialidade delitiva e indícios de sua autoria (art. 311 do CPP), cogitando dos requisitos necessários para o oferecimento da denúncia, quando sequer foi exercida a ação penal.

Por fim, o juiz ainda precisaria atuar de ofício para verificar um dos fundamentos previstos do art. 312 do CPP.

Tudo isso o juiz deveria fazer mediante atuação ex officio numa clara violação à imparcialidade que deve ostentar no processo.

Imaginemos que após cumprir a Resolução 87/2009 do CNJ, decretando a prisão preventiva do autuado em flagrante sem qualquer requerimento ministerial ou representação policial, o juiz se depare com um requerimento do Ministério Público pelo arquivamento do inquérito policial. A única forma de atuação coerente seria a utilização do art. 28 do CPP, provocando o órgão de revisão ministerial acerca do princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal, pois tudo que seria necessário ao oferecimento da denúncia já foi objeto de cogitação positiva pelo juiz e, pior, em atuação sem provocação.

Num eventual processo, nesta hipótese que mencionamos, por denúncia advinda do órgão de revisão ministerial, teríamos como presidente do processo um juiz que decretou a prisão preventiva do réu, de ofício, na fase inquisitorial, e que ainda solicitou a elaboração da denúncia. Realmente, uma drástica violação ao sistema acusatório, que atribui a titularidade da ação penal pública ao Ministério Público (art. 129, inciso I, da CR), derivando daí, dentre outras importantes consequências, que a provocação do Judiciário no interesse da acusação estatal é reservada ao próprio órgão acusador.

Sobre o tema, bem escreveu Danielle Souza de Andrade e Silva:

'O princípio da imparcialidade do julgador representa uma das facetas da garantia constitucional do juiz natural, sendo assegurado constitucionalmente pela impossibilidade de tribunais de exceção (artigo 5º, XXXVII) e pela competência previamente fixada em lei (art. 5º, LIII). O postulado pode ser tido como norteador do processo penal bem antes da vigência da atual Carta. Inegável, entretanto, que ganhou, tal qual os demais, novos contornos, em especial por força das outras garantias constitucionais do réu – incluindo os princípios do juiz natural e da proibição de tribunais de exceção -, às quais está necessariamente relacionado, assim também pela reserva, ao Ministério Público, da promoção da ação penal pública, em caráter exclusivo (a privatividade a que alude a redação constitucional nada mais representa que o resguardo da ação penal privada subsidiária).

(…)

Primeiramente, cumpre lembrar que o princípio da ação, ou da demanda, ou da inércia da jurisdição, segundo o qual cabe à parte a iniciativa de instaurar o exercício da função jurisdicional, contribui de maneira essencial à higidez do princípio da imparcialidade. A experiência demonstra que o juiz que toma a iniciativa de instaurar o processo, o que é típico do sistema inquisitivo, acaba por ligar-se à pretensão, propendendo a decidir favoravelmente a ela”2 (2 SILVA, Danielle Souza de Andrade e. A atuação do juiz no processo penal acusatório: incongruências no sistema brasileiro em decorrência do modelo constitucional de 1988. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 80-81.)

Verifica-se que a pretensa obrigatoriedade do juiz decretar a prisão preventiva, quando da homologação do flagrante, além de violar o art. 129, inciso I, da CR, já que o juiz provoca a própria jurisdição, na fase inquisitorial, atuando de ofício e avançando indevidamente acerca da opinio delicti, é absolutamente impossível, querendo-se agir com um mínimo de responsabilidade social. É que o juiz, para o fim de decretar a preventiva, deve verificar a presença do fumus comissi delicti, ou seja, prova da materialidade de um crime e indícios de autoria, devendo considerar se a conduta narrada no Auto de Prisão em Flagrante se amolda a tipos penais que comportam a decretação da prisão preventiva, nos termos do art. 313, do CPP. Isso tudo quando ainda não há qualquer imputação feita pela futura parte acusadora (Ministério Público ou querelante).

Por fim, diga-se da grave inconveniência de se exigir o exame dos fundamentos da preventiva da análise apenas do Auto de Prisão em Flagrante. Quando o juiz analisa o citado documento deve se cingir a dizer que a prisão está nos moldes do art. 302, do CPP, mantendo-a, ou que não está, quando deve relaxá-la. O Auto de Prisão em Flagrante não contém informações básicas necessárias para verificar a presença dos fundamentos do art. 312, do CPP: garantia da ordem pública (reiteração da prática delitiva, comprovada com folha de antecedentes, p. ex.); garantia de aplicação da lei penal (se o autuado estava se preparando para fugir, p. ex.) ou conveniência da instrução criminal (se o autuado estava ameaçando testemunhas ou destruindo provas, p.ex.), o que pode levar a decretos de prisão mal fundamentados ou concessão de liberdades provisórias a quem deveria ficar preso preventivamente.

Destaco que a prisão em flagrante constitui-se em título de constrição de liberdade capaz, por si, de manter o encarceramento do acusado, conforme bem aponta a passagem extraída de escólio jurisprudencial abaixo coligida3.

Novamente, transcreve-se o que dissemos noutro momento4:

É bom termos em mente qual a composição do Auto de Prisão em Flagrante delito. Vamos ao texto do art. 304 do Código de Processo Penal: “Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto.”

Verificamos facilmente que o Auto de Prisão em Flagrante noticia apenas as circunstâncias em que o autuado estava no momento em que foi preso. Não há uma investigação aprofundada em relação aos fatos ou à pessoa do autuado. O intuito aqui é relatar, especialmente ao juiz (art. 5º, LXII, da CR), o que levou a Autoridade Policial a manter preso em flagrante o autuado (art. 304, §1º, do CPP), de modo que a prisão seja homologada ou relaxada.

A análise possível ao juiz, quando do recebimento do Auto de Prisão em Flagrante, dada a singeleza do que ali se contém, é a homologação da prisão, se estava compatível com a moldura do art. 302 do CPP, ou seu relaxamento, sendo ilegal sua manutenção, por não estar em flagrante o autuado (art. 5º, LXV, CR).

É importante relembrar que, pela certeza visual do crime, já temos uma presunção juris tantum da materialidade delitiva e de sua autoria. Além disso, o fumus boni iuris e o periculum in mora estão presentes desde o momento da prisão em flagrante. O fumus boni iuris (fumus comissi delicti) resta configurado em razão das circunstâncias em que houve a prisão, com o autuado sendo surpreendido no momento em que executava a conduta delituosa, gerando a convicção da existência do delito e de sua autoria. O periculum in mora (periculum libertatis) está presente com a necessidade imediata de se evitar a fuga do autuado e de se obter sua perfeita identificação, além da coleta da prova localizada no local do crime e a providência das perícias necessárias, tudo para o bom andamento da persecução penal.

Aqui chegamos em ponto fulcral: a prisão em flagrante é título autônomo para a manutenção da prisão do cidadão. Ela já traz em seu bojo todos os pressupostos e fundamentos das prisões cautelares.

(…)

A Constituição da República, em seu art. 5º, inciso LXI, já transcrito acima, afirma que os cidadãos podem ser presos em flagrante ou por ordem judicial (salvo os crimes e transgressões militares). Se fosse intenção constitucional limitar a prisão cautelar apenas à ordem judicial, o texto do mencionado art. 5º, inciso LXI, seria outro, a afirmar que apenas por ordem judicial seria possível a prisão.

Repita-se essa consideração, por ser irrefutável: a Constituição da República de 1988 prevê expressamente a prisão em flagrante ao lado da prisão por ordem judicial e não como antecedente desta, de modo que há pleno fundamento constitucional para a manutenção da prisão em flagrante até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”

Dessa forma, ao passo em que entendemos inconstitucional o novel art. 310, inc. II, do CPP, na parte em que determina a conversão de flagrante em preventiva, significando o mesmo que decretá-la ou impô-la, de ofício, em sede inquisitorial, compreendemos que a análise sobre o cabimento ou não de liberdade provisória, com ou sem fiança, demanda documentação minimamente viável para que se possa aferir a periculosidade social do agente (folha de antecedentes) ou se este representa risco para a instrução processual ou, ainda, para a aplicação da lei penal (análise possível ao fim do inquérito policial).

Por fim, entendemos ser plenamente possível, em razão de expressa previsão constitucional (art. 5º, LXI, CF), a manutenção da custódia cautelar do indiciado com base em sua prisão em flagrante até que se tenham elementos suficientes para concessão da liberdade provisória, com ou sem fiança, ou decretação de sua prisão preventiva.

Sendo assim, em face da observância dos requisitos legalmente exigidos para a realização da prisão em flagrante e sua documentação, previstos nos arts. 302, 304, e 306, todos do Código de Processo Penal, mantenho a prisão em flagrante do investigado XXXXXXXXXXXXX.

Intime-se o Ministério Público, a fim de que atue da forma que entender cabível.

Por fim, providenciem-se os antecedentes da(s) pessoa(s) detida(s). Não sendo juntados os antecedentes e comprovante de endereço da(s) pessoa(s) detida(s) em 48 horas (na forma do art. 1º, §1º, da Resolução nº66, do Conselho Nacional de Justiça5), intime-se Defensor Público com exercício nesta comarca para providenciar o que de direito6, em 05 (cinco) dias.

Após, voltem-me com máxima celeridade.

Caruaru, 04 de agosto de 2011.

PIERRE SOUTO MAIOR COUTINHO DE AMORIM
JUIZ DE DIREITO

5 Com redação dada pela Resolução 87/2009.
Resolução nº66/2009 CNJ – art. 1º, §1º Em até quarenta e oito horas da comunicação da prisão, não sendo juntados documentos e certidões que o juiz entende imprescindíveis à decisão e, não havendo advogado constituído, será nomeado um dativo ou comunicada a
Defensoria Pública para que regularize, em prazo que não pode exceder a 5 dias

Nenhum comentário:

Postar um comentário