quarta-feira, 12 de novembro de 2025

FRANKENSTEIN E O HOMEM DIGITAL: A IDEIA INADEQUADA E O FALSO SELF

 

Cuidado, ao lutar contra monstros, para que não te tornes também um.”

Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, §146





FRANKENSTEIN E O HOMEM DIGITAL: A IDEIA INADEQUADA E O FALSO SELF

Pedro Camara Raposo Lopes

A figura de Frankenstein, imortalizada pela pena de Mary Shelley em 1818 e recentemente reinterpretada por Guillermo del Toro em sua adaptação cinematográfica (Netflix, 2025), permanece uma das metáforas mais fecundas da modernidade.

Shelley concebeu seu romance no cruzamento entre o Iluminismo e a Revolução Industrial, quando a ciência se tornava o novo deus, e a razão a nova forma de fé.

Del Toro o filma em meio à revolução digital — uma era em que o homem volta a sonhar com a onipotência da criação, agora não pela matéria, mas pela imagem e pelo algoritmo.

Em ambas, subsiste a mesma tentação: a de confundir luz com sabedoria, domínio técnico com compreensão do real.

O filme de Del Toro, fiel ao pathos trágico do original, retira o monstro do domínio do horror e o reinstaura no campo da consciência: Victor Frankenstein (Oscar Isaac) surge não como herói do progresso, mas como vítima de um conhecimento que não compreende. Sua criatura (Jacob Elordi), abandonada e sensível, é o espelho de uma humanidade que perdeu a medida da própria potência. A experiência do criador que se horroriza com o próprio feito revela o que Baruch de Spinoza chamaria de ideia inadequada: um modo de conhecer que apreende os efeitos sem alcançar as causas, fragmentando o todo e gerando ilusões de autonomia.

Victor Frankenstein é, pois, o arquétipo do homem que pensa sem compreender. Seu erro não é moral, mas ontológico: ele ignora a ordem necessária que une todas as coisas e, acreditando-se causa livre, age contra a natureza. Sua ciência não brota da sabedoria, mas da paixão triste do domínio. A criatura nasce como o reflexo dessa ignorância — consciente, mas sem pertencimento; viva, mas sem vínculo. Busca aprovação, afeto e reconhecimento como se estes pudessem restaurar o elo perdido com o real.

O drama que Shelley concebeu e Del Toro reavivou reaparece em nosso tempo sob nova forma: o sujeito contemporâneo, o homo digitalis, é o novo Victor Frankenstein — criador e criatura do mesmo erro. Como Victor, fabrica incessantemente imagens de si; como o monstro, vive submisso a essas imagens.

O conceito de “falso self”, forjado pelo psicanalista britânico Donald Winnicott, ilumina esse fenômeno com precisão clínica. O false self é o eu adaptativo, moldado pela expectativa do outro, que se sobrepõe ao verdadeiro self e gradualmente o silencia.

Nas redes, esse falso eu tornou-se regra: o indivíduo se constrói como espetáculo, vigia-se, ajusta-se, repete-se. Crê dominar suas projeções, mas é governado por elas. O homo digitalis substitui o ser pelo parecer, o corpo pela imagem, a convivência pelo desempenho. Tal como o criador de Shelley, imagina estar no comando, quando na verdade é cativo da própria invenção.

Lacan, em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, descreveu o homem como ser constituído na falta e determinado pelo olhar do outro. O sujeito digital é a encarnação literal dessa condição: é feito do reflexo que o confirma. Mas, ao contrário da falta ontológica de Lacan, o vazio do homem contemporâneo é fabricado — nasce da falha epistemológica de não se compreender como parte da totalidade, de não possuir uma ideia adequada de si.

Baudrillard, ao descrever a hyperréalité, mostrou como os simulacros substituem a presença. O “eu digital” é a criatura pós-moderna: um signo que se emancipa do ser, uma máscara que já não remete a rosto algum. Como o monstro de Shelley, emancipa-se do criador e o domina.

Para Spinoza, a libertação só advém da ideia adequada — do conhecimento que capta as causas e aceita a necessidade. Ser livre é compreender-se como modus substantiae, parte inseparável da ordem universal. Essa consciência dissolve o falso self e extingue a tirania do ideal. A perfeição real não é ausência de falha, mas a potência de existir conforme a própria natureza.

É nesse ponto que se revela o contraste mais agudo entre o pensamento de Spinoza e a cultura contemporânea da imagem. A natureza não repete formas: cada ser é um modo singular de expressão do infinito, uma centelha irrepetível da substância. A verdadeira beleza é, pois, singular — a adequação entre o ser e sua essência, não a conformidade com um modelo. Quando o homem tenta suprimir as marcas de sua diferença, alisando, corrigindo, galvanizando e uniformizando o que o distingue, não busca harmonia: busca apagamento. Substitui a beleza imanente — expressão da Natureza que se afirma em cada traço — por uma simetria artificial que pretende eliminar o acaso, o tempo e a vida.

Mas, parafraseando Caetano Veloso, a existência não é senão “a dor e a delícia de ser o que se é”. A dor, porque “ser” implica limite e exposição; a delícia, porque é justamente nesse limite que a vida se faz real. O verso de Caetano exprime, com leveza lírica, aquilo que Spinoza chamaria de gaudium — a alegria que nasce da compreensão de si como parte da Natureza, e não como ideal contra ela. A beleza de ser singular não está em fugir do tempo, mas em consentir com ele: é o amor fati Nietzscheano em sua forma mais humana.

É nesse consentimento que reside talvez o sentido mais profundo da existência. Fazer as pazes com a imperfeição e com a finitude não é se resignare, mas reconciliar-se com o real. A vida não é projeto de aperfeiçoamento, mas exercício de presença. Toda tentativa de escapar da limitação é negação do próprio milagre de existir. O que é finito não é defeito do infinito, mas sua forma de expressão. Como ensina Spinoza, compreender a necessidade é libertar-se da servidão das paixões; e como lembra Nietzsche, amar o destino é tornar-se digno dele. A serenidade não nasce do controle, mas da aceitação lúcida — da consciência de que cada instante, com suas falhas e imperfeições, é o modo como o eterno dá-se no tempo.

Assim, a reconciliação com a finitude é também reconciliação com a beleza. O que é determinado, limitado, contingente é o que é vivo; o que é transitório é o que tem sentido. O erro de Victor Frankenstein — e do homo digitalis — é não compreender que a verdadeira criação é a de si mesmo em harmonia com o real, não a tentativa de refazer o mundo à imagem de um ideal.

Mas há tragédia nesse percurso: certos erros são irreversíveis. Victor não pode desfazer sua criação; o homem digital talvez não possa reverter a cisão entre o ser e o simulacro. O algoritmo, como a criatura, adquire autonomia, e a técnica emancipa-se da ética. Quando o instrumento se torna sujeito e o sujeito, instrumento, o erro transforma-se em destino.

Del Toro, em sua leitura fílmica, acentua justamente essa dimensão: não há mais fronteira entre criador e criatura. Ambos são prisioneiros do mesmo engano — o de confundir o poder de gerar com o poder de compreender. A imagem da criatura caminhando entre labaredas não é apenas catarse estética, mas premonição filosófica: o fogo da criação pode iluminar, mas também consumir.

Se não recuperarmos a ideia adequada — o saber de que somos modos de uma única substância, expressões inseparáveis da realidade —, continuaremos a repetir o destino de Victor e de seu reflexo. Criadores e criações de uma mesma ilusão, adoraremos nossas imagens até sermos por elas devorados. Pois, como advertiu Nietzsche em “Assim falou Zaratustra”, “o homem é uma corda estendida sobre o abismo”.

E, como em “O Estrangeiro” de Camus, quando enfim olharmos o mundo e não o reconhecermos, não será porque ele mudou — mas porque, ao buscar ser “perfeitos”, cometemos o erro irreversível de deixar de ser singulares.

Só o finito é belo, porque só o que perece tem rosto.