D E C I S Ã O
Vistos.
Em análise, o Auto de Prisão em Flagrante Delito referente ao nacional C.C.F., acompanhado de requerimento de sua prisão preventiva formulado pelo ínclito Promotor de Justiça Dr. ANDRÉ LUIS MACHADO ARANTES.
Narra-se que o indiciado foi preso na Cidade de Pará de Minas, MG, porque, aos 30.jan.2017, teria subtraído para si uma garrafa de bebida alcoólica (whisky) pertencente ao “SUPERMERCADO EBA”.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS requereu a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva como imperativo necessário à salvaguarda da ordem pública, pois que o flagranteado possui inúmeras anotações em sua folha de antecedentes por crimes análogos.
DECIDO.
Verifico que o Auto de Prisão em Flagrante Delito obedeceu aos ditames dos artigos 304 e 306 do Código de Processo Penal, razão pela qual, por escorreito, HOMOLOGO-O.
A pena abstratamente prevista para o tipo penal em questão é de 01 (um) a 04 (quatro) anos de reclusão. Ergo, inviável se torna a custódia cautelar mercê da norma constante no artigo 313, inciso I do Código de Processo Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 12.403, de 2011.
Todavia, verifico ser o flagranteado reincidente específico, havendo duas notas desabonadoras em sua Certidão de Antecedentes Criminais (folhas 29-30) por fatos acontecidos nos anos de 2009 e 2013, o que possibilita, em esse, a decretação de sua custódia provisória com esteio no inciso II do permissivo legal.
Viável a conversão, passo a apreciar a fattispecie.
É dos autos que o flagranteado teria ingressado no estabelecimento por volta das 08h45min, tendo ali comprado um pão e deixado o local com certo objeto volumoso dentro de suas vestimentas, o que chamou a atenção dos funcionários, até porque o flagranteado já havia praticado outros furtos naquele mesmo supermercado.
Nesse sentido, o depoimento de SÉRGIO GOMES MOREIRA, gerente da vítima.
Verifico que sua prisão ocorreu muitas horas depois, na parte da tarde daquele mesmo dia, consoante se haure nos depoimentos dos militares que efetuaram a prisão, os quais são corroborados pelo Boletim de Ocorrência dando conta do seu encerramento já às 17h06min.
Com o flagranteado não foram encontrados quaisquer objetos que inculcassem tivesse sido ele o autor da infração, embora confesse ele a autoria do delito, tendo mesmo asserido que, àquela altura, já havia trocado a res furtiva por três pedras da droga comumente conhecida por crack.
Transcrevo excerto de seu interrogatório em sede inquisitorial:
[…] que gostaria de esclarecer que está arrependido, ficou sete meses sem usar drogas, mas alega que foi fraco.
Eis a dicção do artigo 302 do Código de processo Penal, verbatim:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I - está cometendo a infração penal;
II - acaba de cometê-la;
III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
A meu aviso, a espécie sub examine não se subsome em nenhuma das hipóteses legais.
Muito embora se venha admitindo, em sede de flagrante ficto, um maior elastério quanto ao lapso temporal que medeia a prática delitiva e o encontro do autor dos fatos, a confissão, a meu juízo, não substitui a necessidade de com ele serem encontrados instrumentos, armas, objetos ou papéis que guardem nexo etiológico com o crime.
Não sendo este o caso, DEIXO DE CONVERTER a prisão em flagrante em prisão preventiva.
Sendo a custódia, ao menos por ora, ilegal, cumpre-me perquirir se se encontram presentes os pressupostos cautelares aptos a ensejar o decreto de prisão preventiva, ex novo.
O decreto de prisão preventiva demanda, como é cediço, prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (fumus comissi delicti).
A materialidade da infração penal, por ora, infere-se das palavras do representante do ofendido e também da confissão extrajudicial do autor dos fatos, confissão essa que, para esse fim, possui serventia.
Quanto aos “indícios suficientes de autoria”, o autuado não nega a prática do delito e as câmeras registraram o preciso momento em que o flagranteado deixou o estabelecimento na posse de objeto volumoso sob suas vestes.
O conceito de “ordem pública”, por se inserir dentro na categoria de conceitos jurídicos indeterminados, vem gerando encapelados debates doutrinários.
A jurisprudência sobranceira não discrepa a respeito da necessidade de custódia cautelar em casos de reiteração delitual, como se haure no seguinte recentíssimo precedente provindo do egrégio Tribunal da Cidadania, ipsissima verba, mas sem os grifos por mim ora adicionados:
CONSTITUCIONAL E PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO. REINCIDÊNCIA ESPECÍFICA. CIRCUNSTÂNCIAS CONCRETAS DO CRIME. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. NECESSIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRISÃO PREVENTIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. RECURSO DESPROVIDO. 1. O "princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. [...] Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público." (HC nº 84.412-0/SP, STF, Ministro CELSO DE MELLO, DJU 19.11.2004) 2. A jurisprudência desta Quinta Turma reconhece que o princípio da insignificância não tem aplicabilidade em casos de reiteração da conduta delitiva, salvo excepcionalmente, quando as instâncias ordinárias entenderem ser tal medida recomendável diante das circunstâncias concretas do caso. Precedentes. 3. A reincidência específica do recorrente, em especial em crimes patrimoniais, conforme o reconhecido pelo acórdão impugnado, demonstra o seu desprezo sistemático pelo cumprimento do ordenamento jurídico. Nesse passo, de rigor a inviabilidade do reconhecimento da atipicidade material, por não restarem demonstradas as exigidas mínima ofensividade da conduta e ausência de periculosidade social da ação. 4. Havendo prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, a prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal, poderá ser decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. No caso dos autos, que o recorrente encontra-se em situação de reincidência, pois ostenta diversas condenações transitadas em julgado pela prática de crimes contra o patrimônio, circunstância que justifica sua segregação cautelar para garantia da ordem pública, como forma de evitar a reiteração delitiva. 5. Recurso desprovido. (RHC 74.785/MG, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 13/12/2016, DJe 19/12/2016)
No mesmo sentido, o sodalício mineiro, verbatim:
EMENTA: HABEAS CORPUS - FURTO QUALIFICADO - PRISÃO EM FLAGRANTE CONVERTIDA EM PREVENTIVA - LIBERDADE PROVISÓRIA - IMPOSSIBILIDADE - DECISÃO FUNDAMENTADA - SEGREGAÇÃO CAUTELAR NECESSÁRIA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA - REITERAÇÃO DELITIVA DO PACIENTE - CRIME SUPOSTAMENTE PRATICADO NO GOZO DA PRISÃO DOMICILIAR - MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO - INSUFICIÊNCIA. 1. A conversão do Flagrante em Prisão Preventiva não configura constrangimento ilegal quando a Decisão se encontra devidamente fundamentada em elementos concretos, sobretudo a reiteração delitiva do Paciente, que responde a duas Ações Penais e se encontrava em Prisão Domiciliar quando da suposta prática do delito, demonstrando que a Segregação Cautelar se faz necessária para a garantia da ordem pública. 2. A aplicação de medidas cautelares diversas da prisão revela-se inadequada e insuficiente, mormente ao se considerar as condições pessoais do Paciente. (TJMG - Habeas Corpus Criminal 1.0000.16.084221-7/000, Relator(a): Des.(a) Octavio Augusto De Nigris Boccalini , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 24/01/2017, publicação da súmula em 10/02/2017)
É preciso, entretanto, e com todas as respeitosas vênias, que se tenha redobrada cautela na apreciação desse pressuposto, sob pena de banalizar o remédio extremo que é a segregação episódica do indivíduo, máxime em se tratando de crimes ligados à drogadição, como sói ser a presente espécie.
Conceitos como “ordem pública” e “periculosidade social” tendem a dar margem a interpretações extremadas. O norte deve ser sempre e sempre a serventia da segregação como providência útil para o processo penal.
Com efeito, a regra é a que a pena e sua expiação sirvam aos propósitos de prevenção [geral e especial] e de retribuição ao injusto penal cometido. A prisão preventiva deve ser servil a esse repto maior, sob pena de tredestinação de seus fins.
Não raras vezes, a demora na prestação jurisdicional penal vem sendo invocada como fundamento para a segregação do indivíduo, caso em que a prisão processual já passa a se revestir de irremissível caráter antecipatório de ululante inconstitucionalidade.
Desde o advento da Lei nº 11.343, de 2006, o encarceramento por delitos ligados às drogas atingiu níveis paroxísticos, como se haure na notícia extraída do sítio mantido pela “Agência Brasil”, na rede mundial de computadores , litteratin:
Criada em outubro de 2006, a Lei de Drogas aumentou o número de encarceramento por crimes relacionados às drogas. No ano da promulgação da lei, 15% das pessoas que eram presas respondiam por crimes relacionados a drogas. Em 2014, esse número alcançou 28%, segundo números do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen/MJ).
“Houve mais de 160% de aumento de 2006 a 2016 e os presos por tráfico, que antes eram em torno de 15%, hoje são 28%. Isso mostra o papel que a aplicação disfuncional da Lei de Drogas tem nesse processo de super-encarceramento”, disse Cristiano Maronna, advogado e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminalísticas (IBCCrim) e secretário executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
Em evento hoje (23) em São Paulo, na Associação dos Advogados de São Paulo, e que discutiu os dez anos da lei, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes reconheceu o aumento das prisões no país. "Caminhamos para chegar, daqui a pouco, a 650 mil presos, campeonato que não gostaríamos de ganhar, colocando-nos como uma sociedade altamente repressiva. E metade desse contingente é de presos provisórios", disse ele durante sua palestra no evento, momento em que alguns espectadores exibiram faixas com os dizeres “Fora Temer”.
"Nossa lei mais recente [a Lei 11.343] veio com algum propósito no sentido de mitigar pelo menos o tratamento jurídico que se dava ao usuário, caminhando em uma linha que levasse à despenalização, mas também fazer distinções entre o traficante, aquele que está associado a esse comércio, daquele que tem uma prática eventual, as vezes condicionada à necessidade. A lei vem com esse propósito, mas surpreendentemente, com a aplicação da lei tivemos um aumento significativo das prisões", disse o ministro.
A “quase descriminalização” do usuário de drogas desacompanhada de uma política séria de saúde pública contra a drogadição trouxe efeitos colaterais deletérios, notadamente em casos como o presente, em que o agente comete pequenos furtos para trocar o bem da vida ilicitamente granjeado pela droga de que tanto necessita.
A resposta estatal, em casos deste jaez, via de regra, é o encarceramento, de vez que o doente furtador passa a ser timbrado de “perigo social” e, corolário, remetido ao cárcere, ao invés de receber tratamento mais condizente com sua patologia, acompanhado de estímulos e incentivos para se libertar da drogadição, a exemplo do que fez Portugal com a sua bem-sucedida Lei nº 30, de 2000, que, em quinze anos, propiciou a redução em mais de 70% (setenta por cento) do consumo de heroína naquelas plagas.
Para mais informações, remeto o interessado para a página virtual do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências ( HYPERLINK "http://www.sicad.pt/"www.sicad.pt).
A solução brasileira [ou arremedo de solução] culminou no recrudescimento da população carcerária. Hoje, temos o vergonhoso título de quarto país que mais encarcera pessoas no mundo. São mais de 700.000 (setecentos mil presos), dos quais um terço aguardam julgamento.
Prende-se pouco. Prende-se mal.
Explico.
O Atlas da Violência 2016 desnuda um outro dado alarmante, qual seja o de que o Brasil é o país em que há maior número de homicídios no mundo, chegando à absurda cifra de 58.000 (cinquenta e oito mil) mortes violentas, isso ainda no ano de 2014.
Na Síria, país em constante estado de beligerância, em quatro anos, morreram 256.000 (duzentos e cinquenta e seis mil) seres humanos. No Brasil, no mesmo período, quase 279.000 (duzentos e setenta e nove mil).
De todo esse montante, apenas 9% (nove por cento) dos homicídios são apurados, nada obstante a população carcerária equivalente, em números, a toda a população de uma cidade de grande porte como Uberlândia.
O magistrado é um homem de seu tempo. O conceito de ordem pública do vetusto Código de Processo Penal, editado sob o regime ditatorial do Estado Novo, não é o mesmo conceito de ordem pública dos tempos de normalidade institucional, ou dos anos plúmbeos, ou dos anos de verdadeira guerra urbana que atravessamos.
A rotina judiciária não pode e não deve servir de sucedâneo de políticas públicas ligadas às áreas de saúde e de segurança.
A ordem pública a que se refere o Código de Processo Penal, dentro na atual quadra histórica, não pode se traduzir numa opção discricionária do magistrado a respeito da conveniência e da oportunidade de se eliminar episodicamente do convívio social o indivíduo carente de políticas de Estado inclusivas, atulhando as penitenciárias com um contingente imenso de usuários de drogas cometedores de pequenos delitos de irrisória ofensividade e que acabam virando massa de manobra de facções criminosas que grassam nas unidades de norte a sul, de leste a oeste deste país.
Volto a repetir que casos como o presente demandam redobrada atenção por parte do magistrado de seu tempo.
É que não é a reincidência [específica ou não] que, sic et simpliciter, justifica a custódia cautelar do indivíduo, visto que ela já serve de esteio para o permissivo legal que possibilita [não justifica, bem entendido] a segregação provisória.
É irrevogável, portanto, a necessária existência de um plus que inculque que o indiciado não só é dado à prática de injustos com a finalidade de adquirir as drogas, mas que faz disso seu modus vivendi, de modo que ele, em liberdade, possa solapar a ordem pública.
A reiteração delitiva que se procura perimir com a custódia cautelar refere-se àqueles que fazem do crime uma consciente opção de um modus vivendi incompatível com a vida em sociedade, não àqueles que, privados do necessário discernimento, embora penalmente imputáveis, praticam pequenos delitos para se dessedentarem de uma necessidade para a qual o próprio Estado contribui com sua leniência obsedante.
Evidentemente, nenhum crime pode permanecer impune.
O que sustento aqui é que a prisão preventiva não pode servir de panaceia para os males do absenteísmo estatal nas áreas de saúde e de polícia de segurança, polícia essa que deve [ou deveria] ser preventiva por conceito e natureza, evitando-se a subversão da causa e do efeito, de molde que o encarceramento venha a ser utilizado como medida para obviar o cometimento de delitos de menor ofensividade, alforriando os órgãos de segurança pública de seus constitucionais misteres.
Uma prisão, em condições tais, seria desproporcional em seus objetivos e violadora, ela mesma, do Estado de Direito.
Vem a talho a preciosa e precisa lição do jovem e talentoso professor Daniel Sarmento, sabidamente uma das maiores autoridades em Direto Constitucional na atualidade e de cuja amizade orgulho-me de desfrutar, em sua petição inicial da já famosa ADPF 347, a qual vem permitindo que o excelso Supremo Tribunal Federal reconheça o “Estado de Coisas Inconstitucional” do sistema carcerário brasileiro, litteratin:
Além da gravíssima e generalizada ofensa aos direitos mais básicos dos presos, as mazelas do sistema carcerário brasileiro comprometem também a segurança da sociedade. Afinal, as condições degradantes em que são cumpridas as penas privativas de liberdade, e a “mistura” entre presos com graus muito diferentes de periculosidade, tornam uma quimera a perspectiva de ressocialização dos detentos, como demonstram as nossas elevadíssimas taxas de reincidência, que, segundo algumas estimativas, chegam a 70%.
[…]
Este quadro de superlotação é agravado em função do uso abusivo da prisão provisória. De acordo com dados do CNJ, 41% dos presos brasileiros são provisórios.
Repito: a prevenção geral e especial se resolvem com a justa aplicação da pena, a seu tempo e modo, de forma proporcional.
O que se mostra de rigor é o acautelamento do meio social contra condutas que traduzam alto grau de ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado, o que, in haec specie, não lobrigo.
Eis porque concedo ao flagranteado a liberdade provisória e determino a imediata expedição de alvará de soltura, se por al não estiver preso.
Oficie-se ao Conselho da Comunidade para que monitore o egresso, encaminhando-o, se for o caso, para Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas do Município de Pará de Minas.
P.I.
Pará de Minas, 09 de fevereiro de 2017.
PEDRO CAMARA RAPOSO-LOPES
Juiz de Direito em substituição